terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Migalhas de luz

Recife reluzia como há muito eu não via. Enquanto eu atravessava uma ponte, eu via a margem contornando a água, se expandindo, pouco a pouco, torneando cada curva de onda, até a outra margem. A luz que havia era a luz da noite - Era noite. Havia uma lua, cheia, no céu. Além dela, a cidade também relampejava, desde os edifícios mais distantes até os que eu chegaria em instantes. Cada poste era uma migalha deixada do caminho que eu seguia. Além disso, era Natal. A cidade estava muito bonita, com suas praças e avenidas. Eu tinha vontade de chorar vendo o Recife assim. O Natal sempre me deu um nó na garganta, mas tudo estava especial como nunca. Ao chegar à Ilha do Recife, entrei numa das ruas que pra mim é uma das mais conhecidas. Estranho que àquela hora não tinha ninguém... Mas sentei-me por ali. Há anos eu ia àquele lugar, dia e noite. Frequentava também sorrisos e corações. E sempre que eu chegava em casa eu tinha uma espécie de regozijo, de prazer automático. Era a sensação que o dia havia passado e a missão, cumprida. Tudo brilhava, brilhava, até meus olhos marejarem também. Eu estava só. Então me levantei e comecei a seguir as luzes. A única solução para minha escuridão, era seguir as luzes. Ia seguindo-as, como quem - novamente - segue as migalhas para um local determinado. Eu poderia andar de olhos fechados por aquelas ruas, mas dentro do meu coração eu não me sintonizava direito, não me encontrava. Os caminhos eram escuros e eu não conseguia ver além... Não doía, mas me dava medo. Medo de que eu pudesse encontrar além. Eu só precisava de uma luz para poder seguir. Alguém roubara as lâmpadas da minha casa. E eu acordava, todas as manhãs, e ainda assim era noite.
De migalha em migalha, fui prosseguindo. Migalhas... Essa palavra é engraçada. Quase me sentindo João e Maria, fui lembrando de tudo o que vivi. Tantas pessoas passaram por mim e só contribuíram para que eu me encerrasse, cada vez mais, em mim. Frequentemente, vendo o jornal, eu tinha vontade de chorar, e não entendia como o mundo podia ser tão cruel - como as pessoas podiam ser tão cruéis, umas com as outras. É muito triste ver quantas pessoas ficaram pra trás, quantos planos foram destruídos... Fui me acostumando com migalhas. E ainda assim, algum propósito levou-me até ali. E quando tudo se fez cinza, alguém me ajudou a acreditar que nem tudo estava perdido. Foi tudo tão difícil, mas alguém mostrou que podia ser fácil, e eu passei a me acostumar com o muito. De repente, eu me senti, desta vez, João sem Maria, e eu seguia as poucas pistas que ela me dera. Um futuro nebuloso estava ali. Meu alicerce eram o que as ruas de Recife me davam de alimento. Me faziam recordar dos momentos que passamos ali juntos - rindo, falando, brigando, chorando, nos amando... Faz somente uma semana que você partiu, mas me deixou uma saudade imensa. Uma saudade tão grande que tudo escureceu. Talvez essa seja única parte chata de amar. Às vezes eu imagino a gente bem velhinho. Quem vai morrer primeiro? Quem vai sofrer primeiro? E quando um de nós partir, será que haverá um recomeço - mesmo sem o outro?
Só quero que saiba que estou lutando para recomeçar mais um ano. Este ano me deu você, espero que não tire de mim também. Porque estou esperando você voltar: aqui, nestes lugares que nossas memórias permeiam. Sempre que eu olhar o mundo, ele trará uma lembrança sua. E onde quer que você esteja, sei que essas migalhas estarão me levando até você. Por favor, me espera! Lembrei então de uma virada de ano que passei... Eu corria pela praia desesperadamente, procurando alguém. Eu ia para um lado, e entre uma pessoa e outra nenhum conhecido. Até que deu meia noite; os fogos começaram, as pessoas gritavam, brindavam, se abraçavam; ainda choravam e felicitavam-se por mais um ano de vida. E eu estava só. Minha única reação foi encostar num carro e olhar para os fogos de artifício. Ali, acho que nem rezar eu consegui. Eu só queria ter alguém para abraçar. Ah, se você existisse nessa época... Eu teria uma estrela pra me apegar, e arrancar esperanças de algum lugar. Mas passou e eu consegui. Vim te seguindo até aqui, mesmo sem saber. Se você não estiver vindo pelas minhas pistas, saiba que eu estou indo pelas suas. Espero que possamos passar juntos esta virada de década. E se não estivermos, saiba que eu estarei encostado em um carro, olhando uma estrela, numa noite como esta. E novamente estarei desejando te abraçar. Eu te amo, Maria. João.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Agora eu sei

O primeiro amor doeu. O segundo, o terceiro... Também. No fim das contas achei que nunca tivesse amado nada. Pra mim foi uma surpresa descobrir que o amor pode ser alegre e feliz - e somente o é assim. Há quem passe a vida se enganando, mas quem ama verdadeiramente não precisa de grandes gestos ou de uma euforia a cada hora, muito menos da dolorosa concepção de amar.
Me lembro que algumas vezes sofri por alguém. Hoje isso me parece engraçado, pois nem mesmo no sofrimento fui correspondido. No fim das contas, cheguei a conclusão mais simples de todas, embora a mais complexa de se aceitar: o amor só acontece quando há correspondência; seja por um gesto, uma palavra, um olhar, um sorriso... Agora eu sei a resposta, mas o que mais me machucava era o fato de que, antes mesmo de sofrer, eu já sabia que iria sofrer, por que eu já sentia que aquela pessoa não servia pra mim (ou eu não servia pra ela). Enfim, eu já sabia que não ia dar certo. Premonitoriamente, lá estava eu sofrendo. Estava antecipado, mas era o meu jeito de me sentir menos triste na separação definitiva. É muito triste um relacionamento que termina. Só de pensar em um casal que eu nunca vi na vida terminando, fico sentido. Faz sentido, uma vez que pra mim não tinha dado certo, pelo menos até agora.
Isso me faz lembrar quando as coisas não vão bem. É meio impossível tudo ir sempre às mil maravilhas. Estou falando de brigas... Não são agradáveis de lembrar, mas nos fazem crescer. Afinal, o que as motiva é o amor. A gente briga pra defender o que é nosso. O amor ou o ego - não importa. Não sou do tipo de ter orgulho, por isso cedo; pra mim o que importa é vê-lo sorrir.
Da última vez, lembro que seu olhar contemplava o chão. Eu estava em pé, próximo a rua. A cidade respirava toda aquela ansiedade, pois tudo estava tenso. Depois do pedido de desculpas, eu ofereci uma carona. Ele não quis; eu insisti. Insisti várias vezes... O sol batia no meu rosto e em sua nuca... Era quase uma cena de filme nas calçadas do Recife. Recife é muito poético, por isso amo-o também. E amava ainda mais, pois ele estava aqui em Recife. Podia ser João Pessoa. Rio de Janeiro, Buenos Aires, Bangladesh... Mas não, ele estava ali, por algum motivo. Eu só queria ficar bem, mas nele ainda residia o orgulho. Foi então que me deixei levar, e me despedi. Enquanto ia em direção ao carro, pensava naquela tristeza que me consumiria durante o dia inteiro que ainda estava por vir. E a única coisa por que eu esperava é que ele me telefonasse em algum momento; momento este que eu não saberia se viria, ou que, por mais ligeiro que viesse, na minha dor, seria a eternidade. Nós dois erramos, nós dois pecamos. Mas o pecado maior era negar tudo aquilo que éramos - e, já adiantando, ainda somos e seremos. Ele ligaria, mas e se não ligasse? Uma hora vai passar... E se não passar? E se foi o limite? Ali poderia ser o fim... Mas eu não sabia que o amor era sem limites. Foi quando tudo mudou: ao chegar no carro, senti um vulto vindo por atrás de mim. Era ele voltando, era ele sorrindo: era o amor. E eu pude sentir que a felicidade estava voltando para casa. Eu sabia, embora que o medo de perder permita que eu me perca: ele estava me amando, e eu amando ele também.
Eu sei que doeu, mas eu sei que tudo melhora. E agora, eu sei que o diálogo é o que rege o tudo. E o silêncio, que rege o diálogo. E o tédio é só uma história mal contada. O agora está cada vez mais único. Agora eu entendo muita coisa, embora não entenda outras. Contudo, mais do que nunca, agora eu sei mais. Sei que sou feliz, sei que sou amigo, sei que sou eu; sei que tenho força, sei que posso forçar, se eu querer, ou se for querido; sei que posso mudar, que posso ser mudado; sei que tudo acontece, sei que posso amar - da forma certa - e que posso ser amado. Sei que me perdi, mas, agora, sei que me encontrei. Quando tive consciência disso - agora - tudo começou a acontecer da forma que eu sempre quis. Agora eu sei que tudo está realmente acontecendo. Agora eu sei que você existe; agora eu sei que o amor existe - e que ele mora em nós.

sábado, 17 de outubro de 2009

Brigas

A raiva passou.
Depois vem a falta,
A imensa falta,
Que você me faz.

Você duvidou,
Questionou meu querer,
Meu bem querer,
Abalou nossa paz.

Você me julga
Por um segundo
Pequeno segundo,
Que não pude estar.

Você me culpa
Por causa do mundo
Os erros do mundo
Não me quer mais.

Você sabe,
Você entende bem
Que sou eu
Quem mais o quer bem.
Mas inverteu,
Você duvida
Da minha resposta,
E complica
A minha proposta,
Diz que fui eu
Quem esqueceu.

Se você foi,
Foi pois queria,
Por que eu também queria
O seu convite.

Se você foi
E é só tristeza,
É nossa tristeza,
Também estou triste.

... Por que não volta?
Aquela alegria,
A nossa alegria,
Ainda existe.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Depois do sono

Acordei me sentindo meio idiota, hoje. Abri os olhos de uma forma estranha, engoli seco e senti uma sensação que eu já conhecia. Tenho facilidade de me sentir idiota. Mas fazia tempo que eu não sentia isso. Tudo anda maravilhosamente bem. Ontem eu bebi até pouco, dormi cedo... Mas acordei assim, meio sem mim, meio faltando um pedaço e com vontade de me encontrar. Estava atrasado pra variar, mas nem corri. Meus pés ainda doíam da noite anterior. Tomei um banho qualquer, um café com um gosto qualquer... Queria que chegasse logo o fim de semana e poder ficar mais a vontade no travesseiro, na cama. Mais sem pressa... Mas sabe, correr às vezes é bom, principalmente agora, mas esse nervosismo não me deixa muito nervoso - pelo contrário, fico no marasmo. Peguei a agenda e fui ver o que eu tinha pra fazer naquele dia: odeio quando não lembro as coisas. Não tem nada a ver com nada, mas eu preciso deixar isso bem claro. Minha memória anda muito fraca e, por vezes, também temo enfraquecer. O dia é repleto de coisas vazias; pegar ônibus, chegar, escrever, cumprimentar, digitar, comunicar (parcialmente), calar, assistir, sair... Quando chegar em casa estarei mais caco do que já estou, talvez faltando mais um pedaço. Sorri ao lembrar - sem precisar da agenda - que você chega amanhã. Fiquei tão feliz, duplamente. Eu estaria mais radiante e eu ainda tinha capacidade de me recordar. É, eu lembro... E ficaria muito triste se eu não o pudesse. O esquecimento de todo seria uma falsa salvação. Me lembrar de você me faz sorrir, me faz sentir uma solidão que me faz bem. Hoje li que para existir a mais perfeita solidão é preciso achar a companhia ideal. E acho que é por isso que ultimamente o mundo me soa tão falso e eu tenho me excluído dele. Ando distante de tudo e todos, mas ando pensando muito. E, quanto mais dentro de mim, vejo retratos seus e decoro o meu quarto com flores, ouço discos de vinil e acendo velas. Lembro datas, oportunidades, compromissos, risos, lágrimas. Lembro de você, principalmente, pois lembro sempre que tenho um coração. O coração é tão rápido e tão constante que na pressa a gente não o sente bater. E confesso que não gosto de perceber os batimentos - dá a impressão que eu vou morrer; na verdade, acho que significa que estou vivendo demais. Lembro, lembro o tempo todo. Você não sai da minha cabeça, como jamais alguém conseguiu entrar nela.
Eu certamente me lembrei, mas a agenda ajudaria. Não, não estava programado para a gente se ver hoje. Só amanhã, quando você fosse chegar de viagem. Acho que é por isso estou assim... Ainda faltava um dia inteiro, que me obrigaria a atravessá-lo sem me queixar. Mas como ia doer... Eu lembrava. E por isso esquecia... Sua lembrança é tão grande, me consome - eu esquecia o resto. O que era o resto? Só lembrava que queria que chegasse amanhã. E eu mal tinha começado a esperar. E o dia mal tinha começado.

sábado, 2 de maio de 2009

Foi tudo verdade

A minha mão estava próxima a dela. Minha mão, cansada, repousava sobre um de meus joelhos, o qual estava mais próximo dela. A dela, por sua vez, estava apoiada sobre um de seus joelhos, o qual estava mais próximo de mim. Poderiamos ter nos dado estas mãos, mas preferimos estar um pouco mais livre. O momento necessitava de um pouco de liberdade, até para poder sofrer menos e ter chance de entender melhor. Cada mão portava um cigarro; minha fumaça indo nela, a dela vindo a mim. O calor soprava e eu já sentia que era hora de ir pra casa. Já tinha vivido demais para um dia só. E ela também. No fim da noite, já não havia muito mais o que fazer; as poucas pessoas que ainda restavam por ali passavam longe e voltavam para suas casas, satisfeitos de si e do mundo. Ou quem sabe assim, da mesma forma que nós. Confesso que a preguiça me dominava um tanto - ou eu gosto de sofrer - e permanecemos ali no banco sem coragem de ir viver. Ela também não parecia muito disposta... Podia esbarrar com alguém, sem querer, logo adiante. Esse é o risco. Quando se anda pelas ruas, quando se vai às festas, quando se vai à praia, quando se entra no ônibus, quando se olha pela janela... A pergunta era: e se ele passar? - Ela sentiria aquele mesmo frio; aquela mesma fraqueza nas pernas, o mesmo tremor no coração. Uma manifestação tão grande que ia parecer que tudo permanecia igual a antes. É difícil pra quem sente... Dá vontade de se esconder, as palavras somem, a alma pesa; é como um terremoto submerso dentro de si. E a pergunta seguinte, mais emocional possível, diria: quando vai passar? Quando? Ela também não saberia responder, e eu tão aprendiz quanto, também não conseguia entender tal lógica, nem o sentimento que nos manteve tanto tempo longe da paz - da nossa paz. O que nos faz escravo de um sentimento? Ah, se houvesse ao menos arrependimento. Mas nem há. Tudo valeu a pena, tudo foi tão lindo... Mas acabou; acabou e não deixou nem pista de que existiu. E quando tudo parece mais ou menos sob controle, um simples trocar de olhares de dois "conhecidos" que se cruzam por aí, desestabilizam, destroem o peito. E a gente vê que não foi nem voltou pra lugar algum: o mesmo lugar, o mesmo sentimento. Não, era melhor ficar ali a noite inteira; deveriamos dormir ali e aguardar até o dia nascer, seria mais seguro. Mas ali, naquela escuridão, seria arriscado demais. Nossos pares poderiam estar por aí, e quem sabe até andando juntos. E qualquer motivo seria o da tristeza, de ver que agora estamos sozinhos, que amamos sozinhos. E quem se ama - está feliz; está por aí tão feliz que pode até nos cumprimentar pela rua: como se nada tivesse acontecido. Ah, minha amiga, só a gente sabe... Quem me dera tudo ter sido uma ilusão. A culpa seria nossa e nossa indignação caberia apenas a nós mesmo. Mas não, foi tudo verdade. Cada dia, cada hora, cada instante que não existe mais. Nem há mais nada a ser dito, mas nossa pele respirando nos entrega, desnudos na multidão, que um dia ainda nos resolveremos. E até lá só nos resta chorar... Quem me dera esse conto fosse apenas uma história. Mas não, foi tudo verdade.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Dia nacional do choro

Eu já senti isso antes. Tenho certeza que eu já senti isso antes. É uma vontade esquisita do peito se rompendo e os olhos em seguida se enchendo de lágrimas. Mas de costume, alguma coisa aqui dentro - ao passo que quer explodir - enormemente se assusta, se encolhendo. E por fim aprendi a ter os olhos secos; apenas o suficiente para continuarem a enxergar. Mas chorar, não; jamais chorar, ainda mais na frente dos estranhos. Logo mais cedo, eu lia um cartaz no qual estava escrito: Dia 23 de abril - Dia nacional do Choro. Haveria um dia especial para se chorar? Talvez houvesse uma reunião onde todos iriam, calados e tristonhos, cada um no seu assento... chorar. Imagineium grande auditório no qual não se debatiam nem se questionava nada. Na conturbação do mundo, aquele era um momento incrível. Veja só, você poderia chorar e ninguém ia ligar. Você teria um tempo pra sofrer - em paz. Seria fabuloso! Isso porque é normal sorrir, exprimir a felicidade e os desejos que contemplem todo o mundo. Mas quem quer chorar, nem sempre é bem compreendido - apesar de serem justamente aqueles que carecem um pouco mais de compreensão. Ainda mais estando na minha pele: homem. Não, homem não chora. Homem que é homem, não chora, devora todas (isso mesmo, beleza não interessa) as menininhas, fala palavrão, bebe sem passar mal e usa um vocabulário próprio com os companheiros de masculinidade. Alguma pessoa inventou que homem é sempre forte, que não tem medo, que é a coragem personificada e tem sempre a decisão pronta a tomar, bem como a razão para estar certo em aplicá-la. Algum(a) infeliz inventou que homem de verdade é assim. Alguém sugeriu um disparate e a passividade da sociedade aceitou. Contra isso, eu posso até ser, mas não me manifesto mais. O mundo todo é assim, queira bem ou mal. E já que é pra viver, tenho que me acostumar com isso.
Hoje me deu certa tristeza; e o que mais me irritou nela foi a gratuidade e a justificativa muito pouco ou nada aceitável, ainda mais me conhecendo como sou e aceitando os conceitos que eu considero certos. E sou bem assim, gosto do que gosto, penso o que penso, e há muito tempo aprendi a me contentar com esse estado de existir. Confesso que não é fácil. É o extremo oposto. Mesmo estando bem, tem certos momentos que me canso de tanta incoerência. E, na maioria das vezes, isso acaba por me entristecer. Não dá pra agradar todo mundo, eu sei. Mas quando existe o não-gostar gratuito, pelo menos há uma postura neutra ou ao menos educada para tratar alguém de que não se gosta. É claro que já senti isso, mas hajo assim. Não que eu esteja fingindo, até por conta que sou sempre transparente quanto a meus sentimentos. (Coisa aversa aos homens, vale ressaltar). Mas tento ser paciente e compreensivo comigo mesmo e com o outro, para talvez quem sabe mudar de opinião. Opiniões mudam, assim como vontades, necessidades, ideias... E por aí vai. Tudo bem, você não gosta de mim. Não há problema nisso... Mas hoje eu me senti vulnerável e especialmente detestado, porque fui tratado com claro repúdio e desinteresse. Não foi preciso de muito não... Eu simplesmente fui ignorado. Enquanto falava, me interromperam de forma brutal por um assunto qualquer, típico dos que se falam quando o silêncio torna-se mais mortal e tenso. E não foi uma simples interrupção, e sim uma cortada literal... As pessoas têm tato, e até absurdo tanta pretensão agir assim e querer passar despercebido. Tive raiva, tive tristeza... Mas não consegui ser indiferente. Seria o melhor pra mim no momento, como geralmente consigo ser. Mas ser assim também tem um preço. Uma vez eu li que "mais vale a vergonha do que a indiferença". Acho que penso mais ou menos dessa forma. Fazia tempo que não me sentia tão escanteado e minimizado; lembrou-me um pouco da infância, da qual tenho mais recordações ruins que boas. Uma criança "diferente", eu era. O que merece? Passar vergonha. Até valia... Mas indiferença é o pior sentimento que um ser humano é capaz de sentir por outro. É em horas como essa que eu tenho vergonha de ser quem sou. Sei que ser assim tem seu preço. Mas deve ser tão caro assim? E com que moeda eu pago? Qual é o dinheiro da vida? Ainda assim poderia ser bem pior - eu podia ser indiferente comigo mesmo. Quem sabe eu estivesse morto, assim. Mas isso é bom; alguém ainda se importa comigo! Mas não, nunca é fácil.
Cheguei ao auditório... Apresentavam-se músicos homengeando Pixinguinha, grande compositor de choro, que aniversariava nesta data antes de sua morte. Ali só havia alegria ao recordar o músico. Achei até graça da minha imaginação que fora tão longe e imaginara tão além... Me sentei em uma cadeira, apoiando a cabeça na parede. Faltavam só algumas horas para eu ser destratado. Mas isso não queria dizer que eu estaria mais ou menos cansado. Eu só queria chorar... Cada cavaquinho, cada violão vibravam suas cordas chorosas, que emitiam gruninhos musicais que no fundo não eram nada: apenas um choro. Era o pranto de alguém, que de tanto chorar só restara aquele modo de aliviar a dor. Viver doía, e o dia a dia consumia tudo isso e mais eu queria desaparecer. Ah, como seria feliz se eu pudesse chorar... Mas até de esperar isso eu já me cansei. E ainda terei tanto aborrecimento pra me abater, tanta estrada torta pra percorrer e queda pra me reerguer. Depois passa, amanhã já terei outras forças, serei forte. Já chega, por hoje já chega. Se não tenho direito ao choro, me deixem dormir. É o meu modo de escapar.

sábado, 28 de março de 2009

O acender das luzes

Eu estou só no meu quarto. O vento sopra pela janela, enquanto eu me regojizo da sua doçura sobre mim. Estou no escuro, no mais compleo breu; aos poucos, o mundo se revela pra mim pelas luzes que emanam o mundo. Está escuro, mas não tenho medo; não devo, nem quero acender as luzes. Hoje foi combinado que o mundo inteiro, a determinada hora, iria apagar as luzes durante uma hora, como símbolo de protesto contra o aquecimento global.
Há pouco eu estava na rua, e vim correndo, correndo, porque eu faço questão de apagar as luzes também. Mas eu me atrasara mais uma vez, e como de costume, sofria por amor. Como já me atrasara, fui no ônibus reparando nas luzes, na cidade; e uma coisa nisso me aborreceu horrivelmente. Muitas casas estavam com as luzes acesas: eram terraços, salas e quartos, todos sem ninguém, inabitados, inóspitos. Cada casa tinha um ar hostil, de quem diz - vou usar sim, estou pagando. Olhava os edifícios e neles haviam varandas enormes e sacadas, com luminárias acesas, como um palco iluminado - mas não havia ninguém. Todo mundo sumiu e esqueceu as luzes acesas. E cada esquina que passava, correndo, eu me enraivecia mais e mais. Será que as pessoas são realmente tão egoístas? Ninguém estava disposto a abdicar um pouco da modernidade, do conforto para fazer um gesto simbólico para marcar a história, para defender o mundo, que é seu... Isso me fazer confirmar que as pessoas simplesmente passam pela vida, e ela escorre, se esvai e nunca é aproveitada de forma dignamente intensa. Mesmo assim, eu faria minha parte.
Cheguei em casa; todos haviam saído e a casa permanecia escura e certamente inóspita ao olhar do mundo. Não acendi um interruptor, se quer. Continuei a passos lentos até os olhos se acostumarem - e enxergarem o mundo de outra maneira. Cheguei no meu aparelho de som e pus um cd novo que tinha comprado mais cedo. O disco rodava e a noite passava deliciosa, como na pré-história, onde só havia eu e eu não precisava sofrer ou ser feliz. O disco entoou um jazz, e eu decidi tomar um banho. Liguei o chuveiro e mergulhei naquela água revirogarante enquanto o piano corria junto àquela voz, e eu assim era capaz de ver minha própria silhueta dançando contra a luz opaca da janela. E se eu visse, perguntaria: é homem ou mulher? Criança ou adulto? Velho ou moço? Rico ou pobre? Branco ou negro?... Não, não haveria resposta, só haveria espaço pra viver: eu simplesmente era.
Assim passou-se cerca de quarenta minutos. Agora, o mais importante; as poucas luzes que haviam se apagado em prol do movimento se acendiam, vitoriosas cumpridoras do dever que queriam cumprir. E as impassíveis continuavam a brilhar como antes, como se nada houvesse acontecido. E eu? Eu queria permancer no escuro. Estava bem ali; não por estar quase invisível; mas estava feliz... E já quase esquecia que tinha uma vida pra sofrer. E eu já quase esquecia do meu amor sofrido... Eu estava bem... O mundo cintilava e eu empalidecia de tanta luz. Minha sombra era suficiente. Enquanto tudo se resgatava, se perdia, na luminosidade dos nossos papéis de humando. E eu me transformava em feliz, na casa escura - porque eu estava aceso.

quarta-feira, 25 de março de 2009

"Boa noite, tristeza;
Acaba agora mais um dia
E junto, uma velha agonia
Por sua vez.
Boa noite, tristeza;
Agora só sei que vou descansar
Adeus, incerteza;
E esquecer que me cansei
E que cansei de cansar,
Cansar de morrer
Sem nunca saber.
Que eu morra dormindo
Ali no cantinho
Quem sabe no domingo
Quando já vou precisar
Ser mais um pouquinho,
Já sem sono.
Corro, fujo, que tolo;
Durmo sem dormir
Pois tenho medo
De longe daqui.
Já pensou no que vai ser?
Posso acordar sem te amar mais
Com espaço até demais
Pra poder preencher.
Até me esqueço
Que sou só sem saber.
Onde está você mesmo?
Em meu coração;
De repente eu mereço
E sofro em vão.
Mas não mendigo,
Digo: Boa noite, tristeza,
Acaba agora uma agonia;
Você some sofrida
Enquanto me espera
De novo raiar o dia.
E se eu acordar só,
Sozinho na cama?
Capaz de pensar
Que ninguém me ama,
A garganta vai dar nó.
E se for verdade
Em que o sono vai dar?
Bom dia tristeza,
Venha me abraçar."

domingo, 15 de março de 2009

Ética amorosa

Ele me olhou com olhos de quem me dava uma última chance. Meu gesto já disse tudo, e sua retenção à porta também; palavras ainda assim foram ditas, mas não em desperdício – em ênfase. Era preciso... Eu sempre enfatizava meu lado feminino na relação ao querer discutir tudo, jogar o branco no preto, usar toda aquela minha criatividade para imaginar resoluções e soluções para reunir ambas as partes, sem parecer um homem. Depois da noitada estávamos alguns passos mais distantes um do outro. As discussões valeram-se para nos estremecer. Mas ali eu queria fazer valer mesmo e realmente expor tudo que eu já expunha com ações para me certificar de que ele já havia entendido tudo mesmo, ou se eu estava mesmo estupefada com sua incongruência.
Como eu pensava, ele resolvera não dormir lá em casa, de acordo com o combinado. Fiquei num cantinho, perto, longe, do lado de fora da porta do meu quarto, já quase no corredor. Preparava novamente a pequena bagagem que ele trouxera mais cedo, com roupas, escova de dentes e pente. Ele não ia parar, ainda que meu rosto estivesse gritando por um pouco de atenção: Não saia agora, não, eu quero falar uma coisa ainda. Tá. Ele parou; esperava... As palavras me fugiam, pois eu nunca tinha sido boa com o falar, muito mais cantando de coração ou escrevendo barulhenta num papel quieto; essas eram as formas mais fáceis de ser precisa em mim... Meus argumentos eram relativamente péssimos no instante. Os debates nos quais eu entrava sempre duravam semanas, meses, anos... Eu falava alguma coisa; me respondiam, eu retrucava ainda que não prontamente. Na tréplica eu me emudecia como quem perdera a batalha; voltava para casa, pensava sobre tudo, via os diversos pontos, examinava o campo, as condições, as possíveis reações, as saídas... No dia seguinte eu voltava disposta e excitada para ganhar a guerra. Era algo tão sublime que me fazia até perder o sono. Era quase como me vingar de uma forma engraçada. É bom ver a cara de surpresos dos meus oponentes quando eu voltava já jogando a roupa suja toda no tanque, quando tudo estava aparentemente resolvido e não havia mais o que ser discutido. No meu ver não havia mal nenhum nisso – era o meu modo de estar certa.

- Gostaria de falar sobre a gente...
- Sobre a gente o quê?
- Sobre nosso amor... Sobre a capacidade de morte do nosso amor.
- Você fala da capacidade dele morrer?
- Não. Falo sobre a capacidade dele nos matar.
Eu não pretendia em nenhum momento assustar, mas já esperava um susto qualquer. Como de costume, ele não esboçara espanto... E o mais espantoso, era que isso ainda me surpreendia. Mas ainda assim eu prossegui, da forma toda que eu pensara no caminho de volta para casa.
Está sendo tudo muito difícil. Somos muito diferentes, mas ainda assim penso que essas diferenças todas somam, que aprendemos muito um com o outro. E que isso é muito bom para crescermos. Você é sempre tão livre, tão jovem... Eu sou mais pacata, mais tranqüila. Mas nem por tanto, isso é motivo para não darmos certo. Somos sempre nós mesmos e isso conta muito, mas ainda há um grande espaço para nos preenchermos. Existem muitas atitudes suas que me desagradam. E você sabe disso, eu já lhe disse. Você é muito egoísta, muito egocêntrico. E hoje você brigou comigo por um capricho seu... Eu estava cansada e estava pedindo por favor para irmos ir embora. Cheguei ao ponto de propor para você ficar com lá com os rapazes e voltar um pouco mais tarde. Eu só queria que você se divertisse, que você ficasse à vontade e que não se chateasse pelo meu cansaço. Sabe, eu não tenho culpa se estou cansada. Tive uma semana cheia, e sei que isso também não é desculpa, pois como você já reclamou isso não seria bem um motivo, pois você também tem seus compromissos. Mas não tenho culpa por não ter o seu fôlego, por não conseguir beber quanto as boyzinhas (odeio o termo!) dos seus amigos. Aliás, não sou nem obrigada a gostar dos seus amigos, como você também não é obrigado a gostar dos meus; mas até agora está indo tudo certo e fico feliz por isso, é um problema a menos que temos. Mas aí quando eu só tentei acertar, você vem com seus pontos de vista só querendo me mostrar que estou errada; vem dizer que eu deveria exigir a sua volta junto comigo, que eu indo você poderia ter ficado com tantas outras mulheres que estavam lá... E você me diz isso como se eu quisesse realmente te deixar lá, como se eu realmente quisesse que você beijasse a primeira garota que passasse muito perto de você, tendo eu mal colocado meus pés pra fora do bar. E se quer saber isso me entristece, pois parece que você não está muito bem decidido assim. Eu sei que o desejo existe, e que isso é normal, mas eu acho que isso é uma questão de confiança. Aí você decide acabar com tudo de vez, e dizer que só confia em si, que pelos outros você não põe a mão no fogo, como se eu fosse tão cruel ao ponto de realmente querer sair dali e te deixar na mão por puro egoísmo, só porque eu estava cansada. E eu te pedi tantas vezes... E você bem que me podia escutar. E ainda fui levar Renata em casa, por um caminho que é longe do nosso. Mas parece que eu sempre estou pelo caminho errado, você é incapaz de reconhecer uma atitude positiva minha, está sempre ressaltando meu lado negativo. Adquirimos uma intimidade grande em pouco mais de um mês, mas nunca houve um gesto seu de transigência. Eu só queria te ver bem, mas aí você deturpa tudo e diz tudo isso... Como poderemos namorar um dia assim? Você destrói qualquer confiança que eu possa ter. E eu digo que ainda não temos nada sério por que eu quero um dia sim ficar com você de vez. E até lá eu construiria confiança e zelo para ficar somente contigo, num relacionamento pra valer. Mas assim vai ser difícil. Mas ainda assim eu quero tentar. Eu gosto de você, gosto da sua companhia, gosto de estar com você, sinto sua falta... E sei que você também sente a minha. Seus amigos mesmo disseram que fazia tempo que eles não te viam tão feliz e satisfeito como estava ao meu lado... Mas não sei o que você espera de mim. Você sempre me deixa mal explicada e quer seguir sempre com sua má-interpretação. Mas tá sendo muito difícil, mesmo. Eu só acho que hoje mesmo não custava nada você ter considerado meu cansaço, e eu ainda quis ceder de deixar você lá sozinho, como você pôde...
- Assim, eu acho que isso é uma questão de ética?
- Ética?
- É... Seria demais você dizer que eu serei seu futuro amor, e... Você vai entender, depois...
Eu fiquei estupefada novamente em como ele respondera tudo o que eu disse com uma simples frase. E Ética? Onde havia ética ali? Existe amor ético? Aliás, amor é ético? Num misto de dor e mistério, eu me perdi num amor que eu não sabia nem se poderia se concretizar. E nele eu corria sério risco de sair ferida novamente.

- Não sei, a gente tá se batendo muito. Pelo nosso bem, talvez fosse melhor a gente dar um tempo. Pra poder pensar, pôr a cabeça no lugar... Algumas semanas...
Meu coração se preparava para se despedaçar pela rodada final, quando ele, com aquele semblante sempre inalterável e indiferente, disse:

- Tudo bem, se você quer assim... Você sabe meu telefone, sabe onde eu moro. É só me procurar. Mais alguma coisa? Posso ir?
Eu não tinha mais nada a fazer a não ser abaixar e balançá-la em sinal negativo. Ele realmente ia embora e me daria o tempo que eu precisasse. Ele novamente não entendera nada do que eu falei; permanecia irredutível na sua visão, no seu egocentrismo exacerbado. As mulheres são sempre mais doces, mas como alguém podia ser assim tão insensível, sem um pingo de consideração? Minha agonia era tanta que eu não podia permitir ele ir embora sem entender tudo o que eu queria dizer. Num ato de desespero, puxei-o pela mão que pendia e o beijei. Ele recebeu meu beijo passivamente, sem temê-lo ou impedi-lo.
Ele saiu, e eu fiquei sem saber se estava tudo bem. Aliás, eu também não entendi muitas outras coisas. Era tudo uma questão de ética... Havia na cabeça dele uma série de regras que deveriam ser seguidas. O mundo tem suas regras, a sociedade, as empresas, as famílias... Pelo visto também divergíamos nas regras; pra ele seria antiético deixá-lo sozinho lá, uma vez que havíamos chegado juntos. Isso seria o bastante para ele agarrar a primeira moça desacompanhada que passasse. Onde havia ética nisso? Porque o desejo dele vale mais que o meu? Porque sua necessidade é mais urgente que a minha? Eu abdicava da minha certeza em prol do seu divertimento e da minha desconfiança. Mas no dia seguinte, quando ele me ligasse, teria certeza que estava tudo bem. Quem era ele para vir me falar de ética? Logo ele, que não é correto em quase nada. Em amar só caberia amor e essa é a primeira não-regra para se poder quebrar todas as regras que impedem a fluidez dos sentimentos. A fatalidade que acometia o nosso amor, ainda que semente, recebia a contribuição para que ele nascesse defeituoso, e nascesse como tantos mortais, destinados às cinzas. E ele, tão racionalmente correto, do tipo de nem ter maturidade para se relacionar com confiança e cumplicidade, via em mim uma criança. Sim, daquelas crianças que têm a pureza no mais íntimo de si, que confiam, que se entregam, que gostava de rir e de se divertir pelo que haveria de mais simples... Era a minha forma de ser, e pra mim é o certo. Mas nem por isso eu me tornava irresponsável. Responsabilidade significa a capacidade de corresponder, ou mesmo recorresponder: a um sentimento, a um auxílio, a uma tafera. Eu me comunicava: mas permanecia sem resposta. – não havia correspondência. Eu seguia os meus sentimentos e deles partiam os meus limites e as minhas liberdades – mas o egoísmo dele que era grande demais para perceber isso. Eu que já estava cansada me cansei ainda mais; estava exausta e confusa.

***

Quando entreabri os olhos já estava claro. Esqueci o abajur aceso. Estiquei o braço até lá para apagá-lo. No meio do caminho tateei um papel que eu não deixara ali, depois dos livros. Era uma pequeno recorte de papel branco, que continha escrito: Seja ética! Olhei para o outro lado da cama, e vi que ele dormia sossegado, virado para a janela. Eu sorria contemplativa... É, acho que estava tudo bem. Mas ainda havia o que ser feito. De qualquer forma ele era um homem só, assim como eu, enquanto mulher, também o era. Éramos um consolo um para o outro; havia entrosamento, o papo era bom, o sexo também... Nos conhecíamos de uma forma legal, apesar de tudo. E eu que esboço tudo no rosto, da alegria à tristeza, posso afimar que ele talvez me conheça melhor do que eu o conheça, já que sou tão transparente. E é assim que ele se aproveita para explorar seu egoísmo em mim, dizendo que me conhece. Pra ele isso não é qualidade, e sim, vulnerabilidade. A ética dele impede que ele pense em algo além... Pobre criança, mal sabe que ainda tem todo o mundo para descobrir. Seu rosto me é familiar, mas isso não quer dizer que o lugar seguro dele é na minha cama, do meu lado. Minha confiança anda a passos lentos e por vezes recua. É como as regras dele fazem com que eu construa as minhas próprias regras. Se continuar assim, não sei se vai dar pra levar adiante. Não estou disposta a conviver com alguém assim, apesar do meu medo da solidão.
Depois de pensar, me levantei calmamente, para não despertá-lo. Fechei a cortina em silêncio. Fui até a cozinha pegar um copo d’água... No caminho de volta, vi papel e caneta sobre a mesinha. Estavam jogados; provavelmente ele escrevera ali o bilhete para mim. Então me predispus a entrar no seu jogo para mostrar o que me interessa. Num recorte pequeno escrevi: Seja responsável! Coloquei o papelzinho no criado mudo ao seu lado, para que visse ao acordar. Voltei, sem nem se quer tocá-lo. E me coloquei na minha posição, como se dormisse. Quando realmente acordássemos estaria tudo bem, sim. Ou seria tarde demais. Mas ele voltara e isso queria dizer alguma coisa. Nossas regras estavam dispostas um ao outro e estávamos dispostas a defendê-las, cada um a sua. Por que depois de tudo ainda acho que estou certa de fato. E só o tempo diria quem o amor mataria – se a mim, se a ele ou se a si próprio. Se ele permanecesse seria mera sorte... Ou uma simples questão de tempo. Tempo o qual estávamos gastando dormindo, segundo regia a nossa alegria e o nosso cansaço.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Fazendo moda

Você trocou de roupa;
Usa sempre o que é próprio
Pra ser belo e bom,
Pra se tornar notório,
Não a mim
Mas a todo o resto.

Assim tão lindo
Posso até sentir vergonha
De você perto de mim.
Além do que,
Não me deixo esquecer
Que talvez agora
Você não esteja muito afim.

Na verdade
Ainda me dói
Toda essa realidade,
Mas já deixei de me importar;
O que não me destrói,
Me faz petrificar.

Estanquei aqui
Vendo que você vai partir;
Um beijo, me dê,
Como se fosse
Um verdadeiro apelo
Ao meu primeiro último.

E foi, você passou
Como se não houvesse nada;
E aí, O que restou
Não foi nenhuma novidade;
Você não é o primeiro
A aderir ao seu bom gosto
A ausência da minha parte
E o meu adeus costumeiro.

Ah, meu bem!
Você que é tão antenado
Nem se deu conta...
Você muito se enganou
Se pensa assim;
Você está desatualizado,
Pois há muito já se tornou
Moda esquecer de mim.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Aparentes semelhanças

As cerâmicas já sentiam os passos se apressarem e ficarem mais pesados. O estresse era circular; percorria, percorria sob si o mesmo espaço, pesadamente. Até que se cansou e saiu disparado pela tangente em uma reta até chegar à cozinha. Já com a xícara na mão, puxou o banquinho com força e se sentou nervosamente, acomodando o traseiro ossudo na parte mais fofa do assento. Esquecera que precisava da água, e também do pó para fazer café. Nestas horas, qualquer acontecimento imprevisto tinha o potencial de elevar o descompasso à quadragésima potência, por mais óbvio que fosse. Ferveu mais ou menos uma vasilha com 4 dedos de água... Enquanto a vasilha girava no interior do eletrodoméstico, ele corria pro lado e pro outro quase na mesma rapidez, sem lembrar onde guardara o filtro do coador. A memória estava péssima... Mas em algum lugar lembrava-se que tinha em algum lugar da cabeça uma vaga lembrança de que não esquecera de comprar filtro de coador de café no supermercado; como da vez passada, que teve que bater na porta de Dona Marlene para pedir um filtro de papel. Dona Marlene é uma vizinha muito solícita, não se nega a nada. Mas da ultima vez que dormiram juntos – não, ela não se nega a nada – ela falou que viajaria a trabalho por uma semana. Provavelmente se tivesse que bater lá, a porta se abriria revelando um velho gordo, com o bucho pendurado sobre o pinto, usando uma samba canção que fedia, munido de um pote de biscoitos sem recheio em uma mão e um controle remoto na outra. Com a cara mais carrancuda, como quem passou muitas noites em claro trabalhando e foi interrompido durante um cochilo, responderia com dois biscoitos ainda sendo mastigados que Marlene viajara e volta não sei quando, e que ele não sabe onde ela guarda o filtro de coador de café descartável. Não, não precisava daquela cena desprezível. (Dona) Marlene não estava, era fato, mas o coador não se tinha certeza. A cabeça às vezes prega uma peça... O coador era muito mais importante que Marlene, mas não procurou entender porque ela (a droga da cabeça) resolvera lembrar de Marlene e de sua casa com cheio de cachorro molhado, enquanto um mísero pacote de filtros descartáveis para coar café, pague 8, leve 9, não era encontrado naquela cozinha minúscula. Ah, achou! A água tombou sobre o pó e o refrescou, sem pena. O café saia fácil, mas ele tinha pressa. Antes de terminar tudo voltou pro banquinho, desta vez com a xícara pela metade. Abriu um vidro fosco trabalhado, da tampa xadrez rosa e amarelo, que herdara de alguma tia já morta, onde lia-se no rótulo açúcar, e com uma paciência descomunal atolava várias colheres cheias de açúcar, como numa criança que se recusava a comer e exigia uma atitude enérgica – ou desesperada – da mãe, ou como quem obriga um grosseirão como o senhor... Seu... É, o corno, marido de Marlene, a ser menos nojento e mais delicado, como o doce ou o próprio pote. Mexeu tudo com força e com pressa... Sabia que só ia passar quando tomasse um café, quando sentisse o morno escorrer pelas paredes do esôfago, acalmando tudo, aparando tudo. Bebeu aquele café doce demais, como quem bebe garapa quente no sol do Saara. Bebeu, bebeu. Fazia constantemente os movimentos de sobe e desce da xícara até não restar nada. Sossegou um minuto, dois, quatro, sete, dez... Novamente sentiu aquela agonia inoportuna que geralmente sentia, que percorria entre os músculos e a pele, sem entrar, nem sair. Sentia muita sede e uma ânsia inexplicável de comer doces; doces, muitos doces, de todos os tipos. Se segurou por um tempo. Depois num surto repentino mandou à merda os avós e bisavós (os oito) que haviam morrido de diabetes ou com hiperglicosagem; numa tijela colocou todos os chocolates que encontrara pela casa. Comera todos em questão de um minuto. Atirou a vasilha no chão, e voltou-se novamente para o vidro cafona de açúcar. A vontade que deu foi de abrir o vidro e despejar tudo na boca, engolir tudo, como quem bebe, num único gole, sem nem mastigar. E o fez... Os grãos eram felizes enquanto caiam como se fosse purpurina reluzindo na pouca luz da cozinha. Grande parte caia pelos cantos da boca e invadiam o piso da cozinha, e entravam por buracos, frestas do pijama. Aquele homem era um açúcar vivo. E como se não bastasse correra aos berros, com a boca cheia, como o insolente vizinho corno, até a portinhola que guarda o liquidificador. Despejara no recipiente: o resto do açúcar do pote (e da boca), biscoitos velhos, mel, um resto de rapadura, geléia de damasco, pastilha de morango, polpa de tamarindo, chantilly, sorvete napolitano, leite condensado, laranja mimo do céu, iogurte de ameixa, granola, ovomaltine, leite em pó e doce de banana que a tia mandara do interior; antes amassou bem tudo com uma colher de pau, e bateu. As lâminas do liquidificador não poderiam resistir a tanta doçura. Mas seria a vida assim tão poderosa com nossa delicadeza? Quando não há quem vença, Deus joga um ou dois copo de água pra dizer quem manda. Ele queria brincar de Deus. A água desceu escorrendo em um redemoinho e tudo virou uma pasta rala de cor marrom claro. Aos prantos, puxou o copo com o equipamento ainda funcionando e tomou, tomou tudo. Tomava, e ao mesmo tempo se banhava. A papa lhe escorria pela camisa do pijama, até se engasgar sufocado com o nariz imerso na solução. Suspendeu e derramou na boca a distância, até começar a errar a mira e acertar os olhos, a testa e os cabelos. Nesta agonia jogou o copo longe, e enterrou as mãos no cabelo que já passara da hora de cortar. A moita tornou-se uma sombra marrom, úmida ao mesmo tempo que fixa. Descendo, levou as mãos ao rosto e trazendo o que restara de sua invenção de sobremesa para o resto do corpo. O mais gozado de tudo, é que toda a agonia nem passou. As pernas esticavam-se involuntariamente, como se se precipitassem numa cãimbra proporcionada pela angústia de viver. Era tudo involuntário: aquela obsessão, os pensamentos, os sentimentos, o desespero... Só era possível sentir, e em algum momento toda a fachada ia ter que cair. Agora sim! Eis alguém doce; um rapaz doce e encantador, com quem poderiam simpatizar. Ninguém sabe de nada! A loucura era necessária pra viver. É normal – para os loucos. E todos acham que sabem tudo. Quero ver ser quem ele é, quando se está assim só. Na verdade, é sempre, mas às vezes a ilusão permite a sensação que dá pra sufocar na multidão – Pelos céus, deveria haver alguém em liberdade que fosse igual a mim! Que me compreendesse minha insanidade sem levá-la de maneira tão analítica e medicinal. O sal da lágrima era só o contraste, o toque; um tempero. Ah, todas as pessoas se parecem umas com as outras; umas em algumas coisas, outras com tantas outras, em tantas outras coisas. No entanto, isso não quer dizer que elas andam juntas ou estão sincronizadas. Um coração jamais baterá como outros, nenhuma cabeça entenderá e verá o mundo como outra. A semelhança também representa diferença... Ou talvez seja o mais diferente de todas as disparidades que há. A igualdade é o princípio a tornar as pessoas tão diferentes, tão desincronizadas, tão demais: alegres demais, tristes demais, decepcionadas demais, insuportáveis demais... Grosseiras, fúteis demais; doces demais. Sofro a mim, mas haja o que houver, mundo ainda é mundo. E se moro nele em algum momento vou ter que permitir-me vivê-lo. Só não me peça pra sofrer menos – não há escolha. É apenas meu jeito de destoar do mundo e de me adequar a ele de vez em quando.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Tempo de amar

"Hoje eu saio
Para comemorar.
Saio sem ensaio,
Da forma que estou,
Sem medo de quem sou
Ou do que vão pensar.

Quero olhar em cada rosto
e dizer com um sorriso
Que não tenho nada pra falar,
Que não quero beijo alheio ou encosto,
Nem competir comigo,
Ou mesmo me desanimar.

Dá-me uma bebida, amigo,
Ou um trago do teu cigarro;
Quero me divertir contigo.
Hoje ninguém impedirá.
Estou feliz, de fato
e quero comemorar.

O motivo
Todos podem ver.
Hoje eu sou só eu,
É em mim que confio.
Se tu vieres, vais perceber
Que algo bom aconteceu.

A vida me presenteou,
Por isso vou celebrar.
Esqueci o que passou;
Agora tenho coragem,
Só resta saber se tens vontade
De repartir desse amar.

Pois é, agora eu amo
A mim e a alguém.
Segura minha mão, amigo,
Comemora comigo!
Só não me seja muito atento;
Ele pode se importar.
Se não vieres, enfim,
Eu compreendo,
Mas vou mesmo assim.
É tempo de amar,
Não preciso de mais ninguém!
Agora existe um bem
Que em casa me espera voltar."

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Febre de Terça-Feira.

Nestes últimos dias ando com o corpo cansado, com a cabeça carregada; o semblante arrebatado de lágrimas exaustas. Tudo desanda; o quarto fora de ordem, cheio de pontas de cigarro, letras de canções, frases de pessoas célebres e poemas inacabados por toda parte. Roupas amontoadas, a cama desfeita há tanto tempo... Passava a maior parte do tempo deitado. Hoje me levantei um pouco melhor. Ainda que com a leve sombra que algo não ia bem. Joguei um pouco de água no rosto, os olhos vermelhos e as pálpebras pesavam, e tudo se tornava pouco a pouco mais claro, dia após dia. Voltei para o quarto sem nada mencionar e me deitei mais uma vez. Minhas costas doíam de tanto tempo sentado e deitado. Estava sedentário, precisava me movimentar, praticar algum exercício. Só assim me sentiria melhor, como também encontraria ocupação para não pensar naquelas coisas que eu tanto pensava. Peguei uma revista nova que estava na cabeceira; li dois parágrafos, mas logo me desinteressei. Resolvi por um disco no aparelho de som. Eram aquelas músicas que eu não cansava de escutar, pois embora me tocassem lá no fundo me traziam qualquer coisa de conforto. Coloquei no repeat e voltei pra casa. Aqueles olhos entreabertos se regeneravam rapidamente. Ontem mesmo choravam como os de uma criança sem a mãe; Hoje carregavam uma superação ainda mal resolvida em seus reflexos, mas sempre fortes e com algo de otimista, sem mágoas. As letras em francês diziam a mesma coisa, mas nenhuma lágrima pendia. Por vezes, o peito apertava e o ar parecia faltar. E não, não era por causa do cigarro. Apesar dos excessos, eu só tinha vinte anos. Eu funcionava a pleno vapor, meus pulmões, meu fígado, meu coração... Por um momento pensei que a velhice tivesse chegado, quando acreditei que não surgiria novo amor. Eu não conseguia amar; na verdade era só eu que é seletivo. Fiquei pensando nos acontecimentos que ainda me assombravam e um poema começava a se esboçar na minha mente. Mas tinha preguiça, não tinha coragem de me levantar e escrever aquelas loucuras silenciosas que na verdade eu gostaria de gritar em sua cara. Li um texto de uma amiga, e ele se parecia muito comigo... A moça na separação abaixara o rosto para evitar os olhos, fizera uma expressão com a boca e disse: tudo bem. Era bem eu, isso. Meus sentimentos se reuniam e ainda havia esperança. Mas naquele momento, eu só queria o silêncio e o escuro do meu quarto. Quem sabe amanhã? Estiquei-me todo e peguei uma caneta e uma folha de ofício que repousavam também na cabeceira. Aos poucos o atrito da caneta com a brancura do papel foi tomando sentido, bem como todos os meus sentimentos:



“Faz tempo que não telefonas
Com saudades de minha paz,
Te convidando a participar
Do meu viver, do meu amar,
Como dias atrás.

Faz tempo que não me procuras,
Que não me aturas, que não me escutas,
Como era habitual para mim na época
Em que para ti minha voz e minha pele eram festa,
Alento. Faz tempo.

Faz tempo que não caminhas
Em direção às nossas lembranças, a mim,
Que tua vida, não mais a expões,
E que ela já não crê, enfim,
No amor, no prazer que uniu nossos corações.

Faz tempo que teu beijo ou teu cheiro
Não vem me visitar,
Faz tempo que tua mão
Não vem se encontrar
Com a minha
Como antes vinha,
Pôr sentimento em minha emoção.

Faz tempo que teus olhos
Não brilham mais como antes
Tornando os meus também brilhantes
Faz tanto tempo, parecia,
Faz só alguns dias...

Faz alguns dias que não és mais quem tu eras,
Mas para mim, me parece tanto tempo...
Encarando o firmamento,
Lamento por teus olhos que não vêem mais
– meu hábito te sujou os olhos.
E se hoje ainda choro,
É por minha culpa:

Meu carinho foi em excesso;
Minha bondade, frágil demais;
E o que julguei estar certo
Não passava de ilusão,
De uma dor.
Se hoje tu não me amas mais,
Não precisa haver perdão,
É assim que eu pago por sentir tanto amor.”

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Pedido à vida

Dentre as todas as coisas que existem no mundo e as que machucam, as que mais nos doem são aquelas que não existem. O vento mais gelado é aquele que sopra de nossa solidão; o fogo que mais nos consome é aquele que arde por dentro, no âmago do coração. O beijo que mais faz falta é o nunca dado; a espera mais dolorida é aquela que nunca virá; o barulho mais ensurdecedor é o silêncio da alma, e a palavra mais dilaceradora é aquela nunca antes proferida, nunca antes pronunciada. O pior perfume é do inodoro; o pior gosto é do insípido. O olhar mais desejado é o daqueles olhos que se teimam em estarem cegos; a mentira mais arrebatadora é a mais sincera; a voz mais agressiva é a que se cala; a lágrima mais sofrida é a dos olhos secos, que não sabem chorar. A pior falta de ar é a dos que se sufocam com o próprio ar que nos alimenta; o toque que mais machuca é o tato recusado; a mão mais ameaçadora é aquela distante, que não se move; a pior dor é a que se não se sente, que se sofre sem doer, sozinho... O amor que mais dói é aquele que nunca se realizará. Somente o ser humano é capaz de dar origem a criações que nunca se concretizarão num mundo onde a realização pode florescer fácil em qualquer solo - pois entre as flores também há o mato, que invade os jardins e os campos. Ilusão se ergue do nada, como também do nada surge o tudo. Quando desmoronar a vista estará clara e minha testa calma. É quando perguntarei: como evitar novamente? Ficarei mudo, sem resposta. Mutilar-se é o único modo de se matar o que não existe - pouco a pouco, bem como o que existe. A ilusão é uma morte que se morre aos poucos, até que a maior delas se desfaça junto ao nossos ossos. É dentre as coisas mais lindas que existem e as mais tristes, as mais belas são justamente aquelas que se sustentam na existência e as mais tristes são as que não existem, que deixaram de existir e que nunca existirão. E o mais triste de tudo não é a desistência de viver ou a renegação da vida. É que viver e existir são sempre tão certos, sempre tão bonitos, sempre tão sinceros. E me dá muita pena não viver e não poder ver o que existe, não existir e não poder ver o que é viver, até deixar de viver e ver o que não pude ser vivido e existido. No entanto, vivo, ainda que triste, pois tenho um mundo para ver - e viver. Vida, deixa-me viver; ainda que eu esteja existindo certo de que algumas das coisas que pra mim são tão mais lindas que todas as outras no mundo não virão a existir jamais e eu não virei a vivê-las mais uma vez.