sábado, 28 de março de 2009

O acender das luzes

Eu estou só no meu quarto. O vento sopra pela janela, enquanto eu me regojizo da sua doçura sobre mim. Estou no escuro, no mais compleo breu; aos poucos, o mundo se revela pra mim pelas luzes que emanam o mundo. Está escuro, mas não tenho medo; não devo, nem quero acender as luzes. Hoje foi combinado que o mundo inteiro, a determinada hora, iria apagar as luzes durante uma hora, como símbolo de protesto contra o aquecimento global.
Há pouco eu estava na rua, e vim correndo, correndo, porque eu faço questão de apagar as luzes também. Mas eu me atrasara mais uma vez, e como de costume, sofria por amor. Como já me atrasara, fui no ônibus reparando nas luzes, na cidade; e uma coisa nisso me aborreceu horrivelmente. Muitas casas estavam com as luzes acesas: eram terraços, salas e quartos, todos sem ninguém, inabitados, inóspitos. Cada casa tinha um ar hostil, de quem diz - vou usar sim, estou pagando. Olhava os edifícios e neles haviam varandas enormes e sacadas, com luminárias acesas, como um palco iluminado - mas não havia ninguém. Todo mundo sumiu e esqueceu as luzes acesas. E cada esquina que passava, correndo, eu me enraivecia mais e mais. Será que as pessoas são realmente tão egoístas? Ninguém estava disposto a abdicar um pouco da modernidade, do conforto para fazer um gesto simbólico para marcar a história, para defender o mundo, que é seu... Isso me fazer confirmar que as pessoas simplesmente passam pela vida, e ela escorre, se esvai e nunca é aproveitada de forma dignamente intensa. Mesmo assim, eu faria minha parte.
Cheguei em casa; todos haviam saído e a casa permanecia escura e certamente inóspita ao olhar do mundo. Não acendi um interruptor, se quer. Continuei a passos lentos até os olhos se acostumarem - e enxergarem o mundo de outra maneira. Cheguei no meu aparelho de som e pus um cd novo que tinha comprado mais cedo. O disco rodava e a noite passava deliciosa, como na pré-história, onde só havia eu e eu não precisava sofrer ou ser feliz. O disco entoou um jazz, e eu decidi tomar um banho. Liguei o chuveiro e mergulhei naquela água revirogarante enquanto o piano corria junto àquela voz, e eu assim era capaz de ver minha própria silhueta dançando contra a luz opaca da janela. E se eu visse, perguntaria: é homem ou mulher? Criança ou adulto? Velho ou moço? Rico ou pobre? Branco ou negro?... Não, não haveria resposta, só haveria espaço pra viver: eu simplesmente era.
Assim passou-se cerca de quarenta minutos. Agora, o mais importante; as poucas luzes que haviam se apagado em prol do movimento se acendiam, vitoriosas cumpridoras do dever que queriam cumprir. E as impassíveis continuavam a brilhar como antes, como se nada houvesse acontecido. E eu? Eu queria permancer no escuro. Estava bem ali; não por estar quase invisível; mas estava feliz... E já quase esquecia que tinha uma vida pra sofrer. E eu já quase esquecia do meu amor sofrido... Eu estava bem... O mundo cintilava e eu empalidecia de tanta luz. Minha sombra era suficiente. Enquanto tudo se resgatava, se perdia, na luminosidade dos nossos papéis de humando. E eu me transformava em feliz, na casa escura - porque eu estava aceso.

quarta-feira, 25 de março de 2009

"Boa noite, tristeza;
Acaba agora mais um dia
E junto, uma velha agonia
Por sua vez.
Boa noite, tristeza;
Agora só sei que vou descansar
Adeus, incerteza;
E esquecer que me cansei
E que cansei de cansar,
Cansar de morrer
Sem nunca saber.
Que eu morra dormindo
Ali no cantinho
Quem sabe no domingo
Quando já vou precisar
Ser mais um pouquinho,
Já sem sono.
Corro, fujo, que tolo;
Durmo sem dormir
Pois tenho medo
De longe daqui.
Já pensou no que vai ser?
Posso acordar sem te amar mais
Com espaço até demais
Pra poder preencher.
Até me esqueço
Que sou só sem saber.
Onde está você mesmo?
Em meu coração;
De repente eu mereço
E sofro em vão.
Mas não mendigo,
Digo: Boa noite, tristeza,
Acaba agora uma agonia;
Você some sofrida
Enquanto me espera
De novo raiar o dia.
E se eu acordar só,
Sozinho na cama?
Capaz de pensar
Que ninguém me ama,
A garganta vai dar nó.
E se for verdade
Em que o sono vai dar?
Bom dia tristeza,
Venha me abraçar."

domingo, 15 de março de 2009

Ética amorosa

Ele me olhou com olhos de quem me dava uma última chance. Meu gesto já disse tudo, e sua retenção à porta também; palavras ainda assim foram ditas, mas não em desperdício – em ênfase. Era preciso... Eu sempre enfatizava meu lado feminino na relação ao querer discutir tudo, jogar o branco no preto, usar toda aquela minha criatividade para imaginar resoluções e soluções para reunir ambas as partes, sem parecer um homem. Depois da noitada estávamos alguns passos mais distantes um do outro. As discussões valeram-se para nos estremecer. Mas ali eu queria fazer valer mesmo e realmente expor tudo que eu já expunha com ações para me certificar de que ele já havia entendido tudo mesmo, ou se eu estava mesmo estupefada com sua incongruência.
Como eu pensava, ele resolvera não dormir lá em casa, de acordo com o combinado. Fiquei num cantinho, perto, longe, do lado de fora da porta do meu quarto, já quase no corredor. Preparava novamente a pequena bagagem que ele trouxera mais cedo, com roupas, escova de dentes e pente. Ele não ia parar, ainda que meu rosto estivesse gritando por um pouco de atenção: Não saia agora, não, eu quero falar uma coisa ainda. Tá. Ele parou; esperava... As palavras me fugiam, pois eu nunca tinha sido boa com o falar, muito mais cantando de coração ou escrevendo barulhenta num papel quieto; essas eram as formas mais fáceis de ser precisa em mim... Meus argumentos eram relativamente péssimos no instante. Os debates nos quais eu entrava sempre duravam semanas, meses, anos... Eu falava alguma coisa; me respondiam, eu retrucava ainda que não prontamente. Na tréplica eu me emudecia como quem perdera a batalha; voltava para casa, pensava sobre tudo, via os diversos pontos, examinava o campo, as condições, as possíveis reações, as saídas... No dia seguinte eu voltava disposta e excitada para ganhar a guerra. Era algo tão sublime que me fazia até perder o sono. Era quase como me vingar de uma forma engraçada. É bom ver a cara de surpresos dos meus oponentes quando eu voltava já jogando a roupa suja toda no tanque, quando tudo estava aparentemente resolvido e não havia mais o que ser discutido. No meu ver não havia mal nenhum nisso – era o meu modo de estar certa.

- Gostaria de falar sobre a gente...
- Sobre a gente o quê?
- Sobre nosso amor... Sobre a capacidade de morte do nosso amor.
- Você fala da capacidade dele morrer?
- Não. Falo sobre a capacidade dele nos matar.
Eu não pretendia em nenhum momento assustar, mas já esperava um susto qualquer. Como de costume, ele não esboçara espanto... E o mais espantoso, era que isso ainda me surpreendia. Mas ainda assim eu prossegui, da forma toda que eu pensara no caminho de volta para casa.
Está sendo tudo muito difícil. Somos muito diferentes, mas ainda assim penso que essas diferenças todas somam, que aprendemos muito um com o outro. E que isso é muito bom para crescermos. Você é sempre tão livre, tão jovem... Eu sou mais pacata, mais tranqüila. Mas nem por tanto, isso é motivo para não darmos certo. Somos sempre nós mesmos e isso conta muito, mas ainda há um grande espaço para nos preenchermos. Existem muitas atitudes suas que me desagradam. E você sabe disso, eu já lhe disse. Você é muito egoísta, muito egocêntrico. E hoje você brigou comigo por um capricho seu... Eu estava cansada e estava pedindo por favor para irmos ir embora. Cheguei ao ponto de propor para você ficar com lá com os rapazes e voltar um pouco mais tarde. Eu só queria que você se divertisse, que você ficasse à vontade e que não se chateasse pelo meu cansaço. Sabe, eu não tenho culpa se estou cansada. Tive uma semana cheia, e sei que isso também não é desculpa, pois como você já reclamou isso não seria bem um motivo, pois você também tem seus compromissos. Mas não tenho culpa por não ter o seu fôlego, por não conseguir beber quanto as boyzinhas (odeio o termo!) dos seus amigos. Aliás, não sou nem obrigada a gostar dos seus amigos, como você também não é obrigado a gostar dos meus; mas até agora está indo tudo certo e fico feliz por isso, é um problema a menos que temos. Mas aí quando eu só tentei acertar, você vem com seus pontos de vista só querendo me mostrar que estou errada; vem dizer que eu deveria exigir a sua volta junto comigo, que eu indo você poderia ter ficado com tantas outras mulheres que estavam lá... E você me diz isso como se eu quisesse realmente te deixar lá, como se eu realmente quisesse que você beijasse a primeira garota que passasse muito perto de você, tendo eu mal colocado meus pés pra fora do bar. E se quer saber isso me entristece, pois parece que você não está muito bem decidido assim. Eu sei que o desejo existe, e que isso é normal, mas eu acho que isso é uma questão de confiança. Aí você decide acabar com tudo de vez, e dizer que só confia em si, que pelos outros você não põe a mão no fogo, como se eu fosse tão cruel ao ponto de realmente querer sair dali e te deixar na mão por puro egoísmo, só porque eu estava cansada. E eu te pedi tantas vezes... E você bem que me podia escutar. E ainda fui levar Renata em casa, por um caminho que é longe do nosso. Mas parece que eu sempre estou pelo caminho errado, você é incapaz de reconhecer uma atitude positiva minha, está sempre ressaltando meu lado negativo. Adquirimos uma intimidade grande em pouco mais de um mês, mas nunca houve um gesto seu de transigência. Eu só queria te ver bem, mas aí você deturpa tudo e diz tudo isso... Como poderemos namorar um dia assim? Você destrói qualquer confiança que eu possa ter. E eu digo que ainda não temos nada sério por que eu quero um dia sim ficar com você de vez. E até lá eu construiria confiança e zelo para ficar somente contigo, num relacionamento pra valer. Mas assim vai ser difícil. Mas ainda assim eu quero tentar. Eu gosto de você, gosto da sua companhia, gosto de estar com você, sinto sua falta... E sei que você também sente a minha. Seus amigos mesmo disseram que fazia tempo que eles não te viam tão feliz e satisfeito como estava ao meu lado... Mas não sei o que você espera de mim. Você sempre me deixa mal explicada e quer seguir sempre com sua má-interpretação. Mas tá sendo muito difícil, mesmo. Eu só acho que hoje mesmo não custava nada você ter considerado meu cansaço, e eu ainda quis ceder de deixar você lá sozinho, como você pôde...
- Assim, eu acho que isso é uma questão de ética?
- Ética?
- É... Seria demais você dizer que eu serei seu futuro amor, e... Você vai entender, depois...
Eu fiquei estupefada novamente em como ele respondera tudo o que eu disse com uma simples frase. E Ética? Onde havia ética ali? Existe amor ético? Aliás, amor é ético? Num misto de dor e mistério, eu me perdi num amor que eu não sabia nem se poderia se concretizar. E nele eu corria sério risco de sair ferida novamente.

- Não sei, a gente tá se batendo muito. Pelo nosso bem, talvez fosse melhor a gente dar um tempo. Pra poder pensar, pôr a cabeça no lugar... Algumas semanas...
Meu coração se preparava para se despedaçar pela rodada final, quando ele, com aquele semblante sempre inalterável e indiferente, disse:

- Tudo bem, se você quer assim... Você sabe meu telefone, sabe onde eu moro. É só me procurar. Mais alguma coisa? Posso ir?
Eu não tinha mais nada a fazer a não ser abaixar e balançá-la em sinal negativo. Ele realmente ia embora e me daria o tempo que eu precisasse. Ele novamente não entendera nada do que eu falei; permanecia irredutível na sua visão, no seu egocentrismo exacerbado. As mulheres são sempre mais doces, mas como alguém podia ser assim tão insensível, sem um pingo de consideração? Minha agonia era tanta que eu não podia permitir ele ir embora sem entender tudo o que eu queria dizer. Num ato de desespero, puxei-o pela mão que pendia e o beijei. Ele recebeu meu beijo passivamente, sem temê-lo ou impedi-lo.
Ele saiu, e eu fiquei sem saber se estava tudo bem. Aliás, eu também não entendi muitas outras coisas. Era tudo uma questão de ética... Havia na cabeça dele uma série de regras que deveriam ser seguidas. O mundo tem suas regras, a sociedade, as empresas, as famílias... Pelo visto também divergíamos nas regras; pra ele seria antiético deixá-lo sozinho lá, uma vez que havíamos chegado juntos. Isso seria o bastante para ele agarrar a primeira moça desacompanhada que passasse. Onde havia ética nisso? Porque o desejo dele vale mais que o meu? Porque sua necessidade é mais urgente que a minha? Eu abdicava da minha certeza em prol do seu divertimento e da minha desconfiança. Mas no dia seguinte, quando ele me ligasse, teria certeza que estava tudo bem. Quem era ele para vir me falar de ética? Logo ele, que não é correto em quase nada. Em amar só caberia amor e essa é a primeira não-regra para se poder quebrar todas as regras que impedem a fluidez dos sentimentos. A fatalidade que acometia o nosso amor, ainda que semente, recebia a contribuição para que ele nascesse defeituoso, e nascesse como tantos mortais, destinados às cinzas. E ele, tão racionalmente correto, do tipo de nem ter maturidade para se relacionar com confiança e cumplicidade, via em mim uma criança. Sim, daquelas crianças que têm a pureza no mais íntimo de si, que confiam, que se entregam, que gostava de rir e de se divertir pelo que haveria de mais simples... Era a minha forma de ser, e pra mim é o certo. Mas nem por isso eu me tornava irresponsável. Responsabilidade significa a capacidade de corresponder, ou mesmo recorresponder: a um sentimento, a um auxílio, a uma tafera. Eu me comunicava: mas permanecia sem resposta. – não havia correspondência. Eu seguia os meus sentimentos e deles partiam os meus limites e as minhas liberdades – mas o egoísmo dele que era grande demais para perceber isso. Eu que já estava cansada me cansei ainda mais; estava exausta e confusa.

***

Quando entreabri os olhos já estava claro. Esqueci o abajur aceso. Estiquei o braço até lá para apagá-lo. No meio do caminho tateei um papel que eu não deixara ali, depois dos livros. Era uma pequeno recorte de papel branco, que continha escrito: Seja ética! Olhei para o outro lado da cama, e vi que ele dormia sossegado, virado para a janela. Eu sorria contemplativa... É, acho que estava tudo bem. Mas ainda havia o que ser feito. De qualquer forma ele era um homem só, assim como eu, enquanto mulher, também o era. Éramos um consolo um para o outro; havia entrosamento, o papo era bom, o sexo também... Nos conhecíamos de uma forma legal, apesar de tudo. E eu que esboço tudo no rosto, da alegria à tristeza, posso afimar que ele talvez me conheça melhor do que eu o conheça, já que sou tão transparente. E é assim que ele se aproveita para explorar seu egoísmo em mim, dizendo que me conhece. Pra ele isso não é qualidade, e sim, vulnerabilidade. A ética dele impede que ele pense em algo além... Pobre criança, mal sabe que ainda tem todo o mundo para descobrir. Seu rosto me é familiar, mas isso não quer dizer que o lugar seguro dele é na minha cama, do meu lado. Minha confiança anda a passos lentos e por vezes recua. É como as regras dele fazem com que eu construa as minhas próprias regras. Se continuar assim, não sei se vai dar pra levar adiante. Não estou disposta a conviver com alguém assim, apesar do meu medo da solidão.
Depois de pensar, me levantei calmamente, para não despertá-lo. Fechei a cortina em silêncio. Fui até a cozinha pegar um copo d’água... No caminho de volta, vi papel e caneta sobre a mesinha. Estavam jogados; provavelmente ele escrevera ali o bilhete para mim. Então me predispus a entrar no seu jogo para mostrar o que me interessa. Num recorte pequeno escrevi: Seja responsável! Coloquei o papelzinho no criado mudo ao seu lado, para que visse ao acordar. Voltei, sem nem se quer tocá-lo. E me coloquei na minha posição, como se dormisse. Quando realmente acordássemos estaria tudo bem, sim. Ou seria tarde demais. Mas ele voltara e isso queria dizer alguma coisa. Nossas regras estavam dispostas um ao outro e estávamos dispostas a defendê-las, cada um a sua. Por que depois de tudo ainda acho que estou certa de fato. E só o tempo diria quem o amor mataria – se a mim, se a ele ou se a si próprio. Se ele permanecesse seria mera sorte... Ou uma simples questão de tempo. Tempo o qual estávamos gastando dormindo, segundo regia a nossa alegria e o nosso cansaço.