quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Uma dose de Tanqueray, por favor.

– Não tem Seager’s não?

– Infelizmente não, Senhora. Não estamos mais trabalhando com Gins nacionais... Temos alguns importados, Tanqueray...

– Tanqueray é bom!

– É sim, é realmente muito bom, Senhor.

– Ah, eu vou pedir uma cerveja... Me vê uma Bohemia.

– Hum... Eu vou querer uma dose de Tanqueray, por favor.

– Ok.

Meu gim chegou rápido. O mais demorado não foi esperá-lo, foi esperar que ela me dissesse alguma coisa. Combináramos pelos nossos perfumes não mencionados que a noite seria densa. Nada fora dito, nem mesmo o nome do perfume. Eu perguntara qual o perfume que você usa? E ela respondeu não se diz o nome de perfume pra ninguém, ninguém precisa ter um cheiro igual ao seu. Olhei de banda; era só mais uma das alfinetadas que eu levara nas últimas vezes que nos encontramos. Mais cedo ela me contara a história de um filme que vira na televisão, e entre filmes e filmes chegou a minha vez de contar uma história, e aí eu fora surpreendido bruscamente por uma interrupção, dita: ah, não precisa contar não, odeio ouvir história de filme. Farta, a idéia era válida pela sinceridade, por que ninguém precisa ouvir o que não quer. Mas acho que eu também não preciso passar pela mesma situação. É constrangedor para uma pessoa como eu que sempre tivera educação na hora de falar com alguém, e mais ainda, que ao procurar um relacionamento sempre tento mostrar o melhor lado meu. Às vezes, ouço o que não quero; muitas vezes por não querer me dar ao trabalho de mudar a estação do rádio, às vezes pois por mais que me incomode eu penso não haver nada melhor para ouvir, ou que há algo no que há de mais podre ou exótico que possa me seduzir por um tipo paixão nunca antes experimentada. Não aquelas paixões devastadoras, nas quais eu morria de amores, escrevendo textos, me debruçando lacrimosamente em travesseiros e canções; uma paixão comedida, rendida a um vício que tornaríamos nós dois partes comuns, que na diferença são semelhantes, e que no meio de tudo haveria um motivo que me convenceria a ceder ao comedimento cômodo. Uma paixão regrada de vida... Porém sempre doce, como outra paixão. Eu, que sempre fora pacífico ao me comportar, estranhei a forma que ela saía se expondo, sem medo que eu não me desinteressasse. Se expunha tanto que muitas vezes me atropelava enquanto eu falava, para falar uma segunda coisa que na cabeça dela era mais urgente. De outras vezes eu falava e falava e no final eu percebia que ela não estava escutando nada – tinha a atenção largada. E nessa falta de atenção morava um tipo de insensibilidade que era voltada para si mesma.

A bebida ainda estava viva no sangue, e o fígado processava com lentidão. Já era o segundo bar da noite. Este estava mais agradável, gente bonita, música boa... Mas o rendez-vous que aparentemente ia bem, estava dependurado num abismo entre nós. A mesa de canto, com nós em cada ponta impunha uma distância ainda maior. Eu já tinha pensado em tudo, mas não cheguei à conclusão nenhuma, de forma que esperamos as bebidas silenciados. O que mais incomodava era o silêncio nosso e o ruído alheio, mas eu já nem estava mais disposto a falar. Tive coisas demasiadamente chatas para poder me reanimar. E eu já esquecia de educação aprendida ou adquirida. Quando meu gim aterrizou na mesa foi o assunto para quebrar o gelo. Eu só tomara gim uma vez antes, e por sinal eu estava com ela. Fora o Seager’s que ela queria beber, mas não tinha naquele bar. Eu inclinei o copo nos lábios e o gosto de Tanqueray tinha o mesmo gosto de Seager’s, que tinha o provável gosto que têm todas as outras marcas de gim. Era um perfuminho fraco, diluído, mas forte; nada mais. De qualquer forma era álcool, e àquela hora, antes de dormir, era só do que eu precisava. Confesso que eu também queria um cigarro. Mas a por enquanto a bebida me bastava, aquele gim igual a tanto outros. É preciso saber se apreciar os líquidos. Mas no fundo, aquelas cervejas, vodcas e whiskys eram todos iguais, ainda que houvesse discussões infrutíferas dos usuários assíduos que marca tal é melhor que outra. No fundo eram apenas formas distintas de se preparar ludíbrios para afastar preocupações e trazer alegrias efêmeras, tão efêmeras como aquelas mulheres vis que se deitam em lençóis tão sujos de tanto serem lavados. Eram líquidos diferentes, mas que eram todos iguais, assim como aquelas mulheres que não passavam de mulheres, as quais eram fáceis de se conseguir sexo. E quando eu a conheci eu não tinha nenhuma outra intenção a não ser levá-la para a cama, o que aconteceu facilmente no primeiro encontro. Depois de tudo ficaram palavras sobreditas, e aí é que não deu pra ficar sem mencionar nada, a comunicação é necessária entre as pessoas. Um diálogo pôde ser estabelecido. Havia, no entanto, erros de interpretação e de emissão de informações, e sempre alguém permanecia carente de uma resposta ou ação. Eu engolia à seco enquanto ela já não parecia ligar ou estava sempre disposta a perdoar, ou era imune. Sua forma de ser insensível impedia que ela tivesse até mesmo o orgulho ferido! Qualquer farpa retribuída era repelida, soava distante; era imunizada, aquela mulher que não se permitia ferir-se, enquanto o mundo se ofende, quer vingança e ironiza. Pra ela só bastava a felicidade, o prazer, a alegria – que digeriria tudo. E não havia bondade alguma nisso, pois ela também não fazia questão de ser amiga. Talvez fosse otimismo misturado a uma auto-bondade extravagante. Mas já eu por pensamentos e por algo que me rege em atitudes, que procurara tanto a sinceridade, encontrei uma pessoa corruptuosamente sincera, e que me flexionara a questionar-me se haveria necessidade ou se eu estava me contradizendo, depois vindo a perguntar se eu tentava dar certo ou estava acomodado com encontros tão freqüentes, quase sempre certos da intensidade. Talvez se houvesse incerteza, não dar muita corda, talvez eu conquistasse um território novo a mais... Ou perdesse todas as fichas. O problema todo é que eu me vi muito criança nisso tudo e talvez ela impertinentemente quisesse me ensinar e eu orgulhosamente quisesse recusar a ajuda. Eu fujo dos joguinhos de amores, de solta e puxa, de larga e pega, e tentava algo sólido e o incrível é que a resposta vinha e nós avançamos, e já não nos limitávamos à cama. Não bem a uma cama, mas ao leito, ao berço; este seria um segundo problema, que revelava que havia algo a ser dito em pleno silêncio. Realmente ali era um lugar seguro, onde quer que nos deitemos, na cama, no banco do carro, na areia da praia, na grama do mundo... Porém, a dificuldade toda é que ela estava tendo dificuldades em ser somente a fêmea da cama... E eu em ser seu macho. Por vezes pareceu quase me utilizar, pois talvez fosse a maneira mais fácil e eficaz de lidar comigo. O prazer é muito mais simples e mais satisfatório. Ela mesmo que o disse. Eu tive que concordar, ainda que nem sempre uma tacada certeira não seja exatamente suficiente. O difícil era o que chamava o prazer, pois os dois tendiam a um estado sobre-humano, sobre-animal, para rever os sentimentos enterrados de outras eras por debaixo dos lençóis e da roupa suja.

Ela quebrara o silêncio dizendo que estava longe demais, que eu deveria sentar mais perto. Mas o garçom vetara minha aproximação por que eu iria atrapalhar a passagem. Não tive culpa, mas ela se ressentiu. Depois uma outra mesa ficou livre, e eu disse poderíamos ficar naquela, dava pra ficar mais junto. Desta vez quem vetara fora ela, e quem se ressentira fora eu. Àquela noite em especial marcamos inconscientemente um com o outro uma troca incessante de farpas e provocações. Um intercâmbio de aparente falta de interesse um no outro, como se ninguém tendesse a se comprometer, aos moldes dos velhos charmes que não rendiam nada, que eu tentava evitar. Já depois, engraçada, insistiu para saber o meu perfume. E para honrar o par, não caberia acatar simplesmente, pois ainda que tosco ainda havia orgulho. Não cedo tão fácil por que não sei ser imune e por ventura posso me sentir idiota por alguns minutos. Seria infantilidade dos dois lados, e quem diria que aquilo mantinha os dois ali sem mover um pé para ir embora pra casa. No fim poderíamos sair os dois perdedores, ou parar agora para vencermos juntos. E no fundo perfumes continuarão a ser sempre perfumes sejam quais nomes eles carreguem e as bebidas permanecerão em suas garrafas, como não deve ser. Sua indelicadeza bruta e mineral tinha certo fundamento no real, e mesmo inconseqüente e desconhecido eu era aluno e ela a professora, como também não era em vão cada palavra que eu deixava a ser absorvida e eu ficava em dúvida sem saber se a falta de atenção era a atenção plena, e eu a magoava profundamente ao alfinetar que ela é dispersa demais e não prestava atenção no que digo. Ela sorria, e dizia não fica com raiva de mim, e me tocava. Eu dizia que não estou com raiva e ela sossega. Talvez eu entenda sua mensagem tão bem mal-interpretada por mim que me perdoe ou permaneça rígida sem nem notar que eu demonstrei uma ponta de sentimentalidade ou de cinismo.

Agora ela se queixara do meu semblante. Disse você tem que estar com sua melhor cara para sair. Me abismou a exigência expressa que eu deveria estar sorrindo para vê-la, mesmo depois de uma semana atribulada. Reagi e ela respondeu que também teve compromissos... O gosto daquilo tudo descia junto com Tanqueray, não maravilhosamente como esperei. Beber perfume não é lá muito agradável, ainda mais com acompanhamento condimentado demais. Mais do que nunca eu queria um cigarro agora; lembrei que ela era ex-fumante, e minha indignação ia a ponto de que seria legal dar uma baforada de fumaça na cara dela e dizer para ela voltar num táxi... Só pra entender o que ela faria – mas sei, faria a cara de incógnita que tem, assustada com a possibilidade de eu não ligá-la daqui a dois ou três dias. Pra não ser sincera sempre, ela me olhava com um olhar desprotegido e se calava, engolindo seco. Não sei que gosto teria aquela saliva, ainda que já tenha experimentado-a. Ela não expressava medo falando, nem perdão. O gosto condiz com o paladar e com a forma de sentir, e eu poderia sentir o dia mais intenso. O que mudava é que eu me perdia pensando nas coisas, aí era quando ela prestava mais atenção em mim. E ela também tinha essa mania de se perder, e não ouvia o que eu falava, ou me atropelava com outros assuntos; me esqueceu. Eu me doava muito mais, e ela permanecia como uma diva inconseqüente que nem perdão pedia. Ela também costumava se perder no vácuo do ar – mas eu entendia. Eu não era compreendido. Até aí era onde eu entendia e ela não. Dissera infantilmente: cresça, querido. E isso me irritou profundamente como tudo: ela tinha mil coisas que me desencantavam incrivelmente; mas ainda assim havia qualquer outra coisa maior que tudo isso e que me interessava e me fazia discutir um relacionamento que nem existe. E ela sabia disso, pois eu fora sincero e lhe disse – Ela rira e dissera ainda bem! No fundo nos dávamos bem; éramos só amigos que se apoiavam, se abasteciam da sensualidade um do outro, negadas pelos demais. Somos as partes perdidas, ímpares, únicas... O choque era muita vida junta, se destruindo de tanta grandeza. Éramos quase que autodestruições que se relacionavam... A diferença é que ela era mais simples. Enquanto eu sonhava em realizações, sonhos e sentimentos ela queria ganhar dinheiro para ter o prazer dos prazeres, queria beber todos os dias e embebedada ouvir música, ficar nua dentro do carro, na rua. Eu representava a complexidade do comportamento, do metódico, que ela insistia em querer transformar. Ela quem disse querer me transformar, coisa que eu nunca entendi, por que elas poderiam já encontrar os caras prontos e apenas tê-los. Ainda mais que de cada palavra herdávamos muito além dos sons emitidos. Sou um rapaz tranqüilo e tenho meus preceitos e de certa forma tudo isso não importava muito a ela. Era sempre certa, sempre madura, caída em plena pista de dança. Era um tanto de egoísmo... Ela é egocêntrica sim - criança. Sempre tentava agradar, fazer as pessoas se sentirem bem, pensando mais no que me rege que na educação... Ela própria quis dizer que eu estava errado. Pela primeira vez acho que ela acertou em algo. Mas eu sou assim e ela era daquele misto de um si que não se envolve. Era a forma que tinha de se defender – desnomear o olfato e o gosto. Tanto fazia inspirar ou ingerir, desde que a noite fosse fria e as luzes quentes, com gente passando e cheirando a desnomes de perfumes e bebidas tão embriagantes quanto a dor dos desiludidos e daqueles que têm noites melancólicas em seus ninhos. Ela era viva e jovem e eu já tinha os anos avançados no tempo que eu levei pensando em quem ela era de verdade. Enquanto eu pensava, ela foi vivendo, vendo pessoas passarem; dois amigos brindaram, um casal de lésbicas se afagou disfarçadamente por debaixo da mesa, um grupo de amigos dançou onde não havia ninguém... Meus olhos foram pesando cada vez mais, e ela foi se incomodando. Eu tive certa culpa, confesso. Não era fácil ser eu. Tive que pedir desculpas por ter feito o que eu tive que fazer, mas eu era sempre eu, assim como ela era sempre ela. Mas ela não se desculpara... Sua imobilidade e sua mudança de assunto era a deixa que ela ignorou e continuou como se nada houvesse acontecido. Ela engolira a seco, agora... O orgulho, o egoísmo, o vício. E eu também quis deixar meu orgulho de lado. Assim foi possível mudar de assunto; rompeu-se naturalmente o silêncio, como começou.

Depois de conversas sinceras resolvemos pedir a conta e ir para casa. Meus olhos pesavam e eu dirigi assim pesadamente até chegar em casa, com aquela vontade grande de me entregar ao sono. Era a primeira saída que saíamos sem ir para a cama depois de beber... Era um avanço; ou um retrocesso. Não sei se vê-la seria mais ou menos interessante do que antes, a partir de agora. Quando estacionei o carro na frente de seu prédio e olhei nos olhos maquiados eu lembrei que era bom beijá-los. Estava silêncio novamente. Amanhã tínhamos uma festa marcada, portanto seria breve o próximo encontro. Depois de depois já era uma outra história. Por amostragem, era certo que os próximos encontros seriam como hoje, se existissem. Estávamos dispostos a continuar nos encontrando, como também estávamos dispostos a continuar a ser quem somos. Não era uma questão de ceder, mas que mesmo na semelhança éramos diferentes. Mas até que ponto isso importava? Que besteira minha de que os pares devem ser iguais, que o amor deve ser ardente e efusivo, como se fosse acabar amanhã, que a correspondência tinha que ser necessariamente gêmea à pergunta para dar certo. De qualquer forma continuaríamos a ter nossas diferenças e nossas igualdades. Era um fato que algum dia não iremos nos encontrar mais; ele chegaria anunciado e saberemos o que aquilo quererá dizer. Mas até lá podemos nos envolver de forma tal que não quereremos dizer adeus, ou podemos nos envolver nesses problemas que se repetirão sem cessar, e nós diremos que foi feito o que teve de ser feito. Tolice, talvez, eu permitir que tudo aconteça sem compromisso, embora com aviso prévio. Ah, ela já está informada... Seria mais covardia estar com alguém por que não se tem ninguém, por comodismo. Mas eu já reparara que era mais: dentre as tantas coisas que me fariam desencantar dela havia algo maior que superava o que havia. Ela era simples, era a vida intensa, a sinceridade, era a música, era a beleza peculiar que se mostra só pra si. Era ela dançando nua no espelho, do outro lado da vida. Não era o sonho, era a vida – como ela é. É a mulher... É uma mulher, que poderia ir além da cama. Era criança, gente que nem eu. Não, ela teria os mesmos problemas, como eu. E só assim seríamos o que nos cabe ser, até o momento que é nosso por direito natural. Daquelas discórdias terei demais... Mas por enquanto aquela noite me bastava. Daqui há quatro ou cinco dias eu sentiria necessidade de telefonar de novo, mesmo que só pra saber se está tudo bem. E sei que ela estaria feliz em ver meu telefone aparecer no identificador de chamadas. Nos encaminhávamos para um namoro, e eu já pedira desculpas antecipadamente pois não sei se seria capaz de me comprometer. Como eu direi, é a experiência pra saber se vale a pena. Valerá algo ou não, mas enquanto vale o que é, na intensidade que lhe coube existir, foi suficiente. Disse que não queria machucá-la; ela perguntara como. Eu não sei dizer... Mas desculpa por ter sentido sono. Amanhã dormirei pela tarde, e estarei bem esperto à noite! Ela sorriu e me desculpou... Ela nunca fala nada quando desculpa, simplesmente se cala, imóvel, ou muda de assunto. Não havia o que perdoar; éramos dois adultos e queríamos ambos estar ali. Que tolice... Fez-se silêncio de novo. Ela me abraçou e disse você deveria passar mais perfume aqui, tocando o centro do meu peito, por cima da camisa. Eu mencionara os locais estratégicos que eu passara perfume, mas ela já não estava escutando. Passaram-se uns dois segundos e eu tinha certeza que ela não lembrava de uma só palavra que eu acabara de dizer. Tinha perca de memória recente, como diriam. Mas mesmo acho que ela só não queria saber das coisas fúteis e sem valor, que não acrescentariam nada. Se não queria lembrar-se, não precisava começar a aprender – por isso que também ela não foi embora. Pra ela não era encantador ou importante saber tocar violão, falar francês ou escrever poemas, como para outras mulheres que vejo por aí. Pra ela só basta saber viver intensamente, na companhia um do outro. E eu me ofendia em vão, pois ali estava uma vida intensa como ela só. A procura tão exaustiva por vezes pode confundir o desejo. Mas se ele parece tão insatisfeito talvez não tenha sido suprido... E daí? Estou aprendendo a perdoar o que não precisa de perdão. Não se perdoa ninguém por ela ser quem é, nem por querer o que quer.

Estávamos no carro, parados; duas crianças aprendendo a crescer, brincando de serem adultas. Por enquanto, é o momento que nos cabe. Por enquanto, aquilo estava bem. Mas até quando? Silêncio; depois de até amanhã, fizera-se silêncio, daquele freqüente a noite inteira. Mas já nos perdoamos por nossa infantilidade e nossa velhice. E deixando-as a parte, os locais onde se passa perfume são tão inúteis quanto os locais de se colocar bebida; tanto faz tomá-los ou cheirá-los. Ao fim e ao cabo são finos modos de mostrar que a água pura pode não matar a sede, uma sede criada por aqueles que morriam secos de tédio ou de desamor, buscando reaver a vida; esqueceram-se de si; eram meros líquidos, como éramos pessoas com meros sentimentos e sensações. Mas vidas... Não haveria outras como aquelas... Já não havia problemas, e o cansaço daqueles segundos era agotador. O ruído calado me irritou de novo, mas ela não notou que as estrelas do céu mudaram um pouquinho de posição. Bebamos a vida, cheiremos a vida. Mais uma dose! E antes que tivéssemos qualquer coisa que não o agora, fiz o que tive de fazer. Passei a mão pela sua nuca para puxar a cabeça e avancei naquela boca silenciosa que me chamava; eram emudecidas, eu e ela, no silêncio final, que nos satisfaria plenamente como a música que estaríamos predestinados a dançar juntos.

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quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Do começo e do fim

Um universo é conhecido especialmente por ser magnanimamente desconhecido. Nesse desconhecido cabe existir coisas diversas, dentre as quais a maioria delas são tão desconhecidas como o próprio universo. Talvez sejam elas também universos, assim como aquele que lhes serve de casa. Mistério por mistério; seria inviável que cada um se sustentasse independentemente - seria orgulho demais para um simples enigma. Dentro de cada segredo se escondem segredos maiores, que guardam outros mais essenciais, e que guardam outros mais primordiais, antes do antes. Até chegar a um segredo que não é segredo nenhum, é a verdade simples e complexa como ela só: simplesmente é. Existe por conta própria na suspenção do ar sobre um espaço que de tão grande não existe. Seria impossível imaginar um espaço tão enorme que coubessem todo um universo sem fim, como também seria imaginar que o universo tenha paredes da cor do nada, limitando-se a uma caixa irregular. Seria o mesmo que afirmar que toda uma pessoa - qualidades, paixões, lembranças, sentimentos, lágrimas, saudades, dons, vontades, liberdades, amizades, sentidos... - cabe dentro de um corpo sólido que no fim de tudo se cansa da fantasia de viver, e desiste de tudo para ser nada. Seria maldade demais do que quer que for que nos permite viver. Somos todos grandes, somos todos ilimitados - somos todos universos; que aprendem, que amam, que a todo instante nascem e renascem, se transformando na própria energia que nos ergueu.
Por isso começar pode ser confundido com terminar. Há quem diga que as duas coisas são opostas, mas as vejo muito sinônimas. É parecido com chegar e partir... Hoje lembrei que uma conhecida minha estava de viagem marcada para amanhã. Meio envergonhado da pouca intimidade que temos, lhe telefonei para desejar uma boa viagem. E foi incrível a satisfação com que meus ouvidos escutaram a sua voz tão alegre e feliz com a minha lembrança. Ela partia, junto com seu universo para uma terra distante, sem nem saber se voltaria. Aqui deixaria um pedaço de si... A medida que dava um grande passo em busca de uma nova parte sua que nunca antes fizera parte dela. E necessariamente o fim da vida dela nesta cidade não representa o fim, mas talvez o começo. Como a chegada dela a seu destino pode ser tida como a cena que desfecha toda sua trajetória enquanto humana.
Esse texto pode ser o começo deste blog, como também pode ser o fim. Se um dia ele acabar, você que lê saberá que minha despedida está aqui. Saberei enfim quando houver um tempo em que o sentido seja certo quanto às falhas e às certezas. Mas tudo isso aqui nem é nada... É apenas um meio de exprimir o que um universo diz - um universo como tantos outros: que pensa, que sente, que se cala, que se expressa, que diz com um olhar, que dá um sorriso para permitir entender. Um universo tão simples como só ele mas em especial, dissoluto, que preza a liberdade muitas vezes até em excesso. Um universo libertiginoso, que por ser livre demais, se prende; por ser selvagem em excesso, se pacifica; por ser vil de tudo, ama.
Somos todos universos, presos libertados. Além do mais, somos a intriga do universo que nos rege. Somos todos de um todo. Que quem sabe queria dizer um. Sempre me intrigou a semelhança entre um átomo e uma galáxia. Um átomo representa uma massa de prótons, na qual em órbita giram elétrons... Numa galáxia, planetas giram em órbita em volta de uma estrela. A única diferença de tudo é o tamanho. Como se pequeno ou grande fizesse diferença, assim como começar e terminar, chegar e partir. Como criança, imagino que talvez sejamos todos um pequeno átomo de um gigante qualquer. Mas quem seria esse gigante? Deus? Ah, acho que já estou indo longe demais... Que liberdade!




"Liberdade pra mim é pouco. O que eu quero ainda não tem nome" (Clarice Lispector)