sábado, 24 de janeiro de 2009

Aparentes semelhanças

As cerâmicas já sentiam os passos se apressarem e ficarem mais pesados. O estresse era circular; percorria, percorria sob si o mesmo espaço, pesadamente. Até que se cansou e saiu disparado pela tangente em uma reta até chegar à cozinha. Já com a xícara na mão, puxou o banquinho com força e se sentou nervosamente, acomodando o traseiro ossudo na parte mais fofa do assento. Esquecera que precisava da água, e também do pó para fazer café. Nestas horas, qualquer acontecimento imprevisto tinha o potencial de elevar o descompasso à quadragésima potência, por mais óbvio que fosse. Ferveu mais ou menos uma vasilha com 4 dedos de água... Enquanto a vasilha girava no interior do eletrodoméstico, ele corria pro lado e pro outro quase na mesma rapidez, sem lembrar onde guardara o filtro do coador. A memória estava péssima... Mas em algum lugar lembrava-se que tinha em algum lugar da cabeça uma vaga lembrança de que não esquecera de comprar filtro de coador de café no supermercado; como da vez passada, que teve que bater na porta de Dona Marlene para pedir um filtro de papel. Dona Marlene é uma vizinha muito solícita, não se nega a nada. Mas da ultima vez que dormiram juntos – não, ela não se nega a nada – ela falou que viajaria a trabalho por uma semana. Provavelmente se tivesse que bater lá, a porta se abriria revelando um velho gordo, com o bucho pendurado sobre o pinto, usando uma samba canção que fedia, munido de um pote de biscoitos sem recheio em uma mão e um controle remoto na outra. Com a cara mais carrancuda, como quem passou muitas noites em claro trabalhando e foi interrompido durante um cochilo, responderia com dois biscoitos ainda sendo mastigados que Marlene viajara e volta não sei quando, e que ele não sabe onde ela guarda o filtro de coador de café descartável. Não, não precisava daquela cena desprezível. (Dona) Marlene não estava, era fato, mas o coador não se tinha certeza. A cabeça às vezes prega uma peça... O coador era muito mais importante que Marlene, mas não procurou entender porque ela (a droga da cabeça) resolvera lembrar de Marlene e de sua casa com cheio de cachorro molhado, enquanto um mísero pacote de filtros descartáveis para coar café, pague 8, leve 9, não era encontrado naquela cozinha minúscula. Ah, achou! A água tombou sobre o pó e o refrescou, sem pena. O café saia fácil, mas ele tinha pressa. Antes de terminar tudo voltou pro banquinho, desta vez com a xícara pela metade. Abriu um vidro fosco trabalhado, da tampa xadrez rosa e amarelo, que herdara de alguma tia já morta, onde lia-se no rótulo açúcar, e com uma paciência descomunal atolava várias colheres cheias de açúcar, como numa criança que se recusava a comer e exigia uma atitude enérgica – ou desesperada – da mãe, ou como quem obriga um grosseirão como o senhor... Seu... É, o corno, marido de Marlene, a ser menos nojento e mais delicado, como o doce ou o próprio pote. Mexeu tudo com força e com pressa... Sabia que só ia passar quando tomasse um café, quando sentisse o morno escorrer pelas paredes do esôfago, acalmando tudo, aparando tudo. Bebeu aquele café doce demais, como quem bebe garapa quente no sol do Saara. Bebeu, bebeu. Fazia constantemente os movimentos de sobe e desce da xícara até não restar nada. Sossegou um minuto, dois, quatro, sete, dez... Novamente sentiu aquela agonia inoportuna que geralmente sentia, que percorria entre os músculos e a pele, sem entrar, nem sair. Sentia muita sede e uma ânsia inexplicável de comer doces; doces, muitos doces, de todos os tipos. Se segurou por um tempo. Depois num surto repentino mandou à merda os avós e bisavós (os oito) que haviam morrido de diabetes ou com hiperglicosagem; numa tijela colocou todos os chocolates que encontrara pela casa. Comera todos em questão de um minuto. Atirou a vasilha no chão, e voltou-se novamente para o vidro cafona de açúcar. A vontade que deu foi de abrir o vidro e despejar tudo na boca, engolir tudo, como quem bebe, num único gole, sem nem mastigar. E o fez... Os grãos eram felizes enquanto caiam como se fosse purpurina reluzindo na pouca luz da cozinha. Grande parte caia pelos cantos da boca e invadiam o piso da cozinha, e entravam por buracos, frestas do pijama. Aquele homem era um açúcar vivo. E como se não bastasse correra aos berros, com a boca cheia, como o insolente vizinho corno, até a portinhola que guarda o liquidificador. Despejara no recipiente: o resto do açúcar do pote (e da boca), biscoitos velhos, mel, um resto de rapadura, geléia de damasco, pastilha de morango, polpa de tamarindo, chantilly, sorvete napolitano, leite condensado, laranja mimo do céu, iogurte de ameixa, granola, ovomaltine, leite em pó e doce de banana que a tia mandara do interior; antes amassou bem tudo com uma colher de pau, e bateu. As lâminas do liquidificador não poderiam resistir a tanta doçura. Mas seria a vida assim tão poderosa com nossa delicadeza? Quando não há quem vença, Deus joga um ou dois copo de água pra dizer quem manda. Ele queria brincar de Deus. A água desceu escorrendo em um redemoinho e tudo virou uma pasta rala de cor marrom claro. Aos prantos, puxou o copo com o equipamento ainda funcionando e tomou, tomou tudo. Tomava, e ao mesmo tempo se banhava. A papa lhe escorria pela camisa do pijama, até se engasgar sufocado com o nariz imerso na solução. Suspendeu e derramou na boca a distância, até começar a errar a mira e acertar os olhos, a testa e os cabelos. Nesta agonia jogou o copo longe, e enterrou as mãos no cabelo que já passara da hora de cortar. A moita tornou-se uma sombra marrom, úmida ao mesmo tempo que fixa. Descendo, levou as mãos ao rosto e trazendo o que restara de sua invenção de sobremesa para o resto do corpo. O mais gozado de tudo, é que toda a agonia nem passou. As pernas esticavam-se involuntariamente, como se se precipitassem numa cãimbra proporcionada pela angústia de viver. Era tudo involuntário: aquela obsessão, os pensamentos, os sentimentos, o desespero... Só era possível sentir, e em algum momento toda a fachada ia ter que cair. Agora sim! Eis alguém doce; um rapaz doce e encantador, com quem poderiam simpatizar. Ninguém sabe de nada! A loucura era necessária pra viver. É normal – para os loucos. E todos acham que sabem tudo. Quero ver ser quem ele é, quando se está assim só. Na verdade, é sempre, mas às vezes a ilusão permite a sensação que dá pra sufocar na multidão – Pelos céus, deveria haver alguém em liberdade que fosse igual a mim! Que me compreendesse minha insanidade sem levá-la de maneira tão analítica e medicinal. O sal da lágrima era só o contraste, o toque; um tempero. Ah, todas as pessoas se parecem umas com as outras; umas em algumas coisas, outras com tantas outras, em tantas outras coisas. No entanto, isso não quer dizer que elas andam juntas ou estão sincronizadas. Um coração jamais baterá como outros, nenhuma cabeça entenderá e verá o mundo como outra. A semelhança também representa diferença... Ou talvez seja o mais diferente de todas as disparidades que há. A igualdade é o princípio a tornar as pessoas tão diferentes, tão desincronizadas, tão demais: alegres demais, tristes demais, decepcionadas demais, insuportáveis demais... Grosseiras, fúteis demais; doces demais. Sofro a mim, mas haja o que houver, mundo ainda é mundo. E se moro nele em algum momento vou ter que permitir-me vivê-lo. Só não me peça pra sofrer menos – não há escolha. É apenas meu jeito de destoar do mundo e de me adequar a ele de vez em quando.

Um comentário:

Carolina P. disse...

Olá ! Obrigada pelo comentário também :D
Suas palavras se transformam em minhas em segundos. Quando comecei a ler o texto coloquei todos os meus neuronios para funcionar, enfim não é o texto mais objetivo que já li. Mas de acordo com o tempo, me habituava a seu modo de escrever e de ver e vida. Até que quando eu menos esperava, lá estava eu: dentro do texto. E para acompanhar o narrador, me adocicava cada minuto mais. De forma que acompanhei seu raciocinio até a última palavra. Viajei em suas idéias. Isso torna o seu texto fascinante, parabéns!